Há 30 anos, Portugal encontrava-se a atravessar o segundo período de crescimento mais rápido do século XX. A entrada nas então chamadas Comunidades Europeias em Janeiro de 1986 tinha, de par com a conjuntura internacional favorável que então se vivia, proporcionado ao País um período de elevado crescimento real do Produto, reflectindo em larga medida os efeitos da abertura comercial e da livre circulação de factores produtivos, assim como da liberalização financeira entretanto ocorrida. Nesse período, o País convergiu fortemente em termos reais com os demais países da União Europeia, reformou-se a tributação e criaram-se novas e mais robustas instituições de regulação nos mercados relevantes. Ao mesmo tempo, deu-se início, após a revisão constitucional de 1989, à privatização de muitas empresas que tinham passado para a esfera pública em 1974 e 1975. Mesmo a crise de 1993 não deixou marcas significativas, estando o País já em plena recuperação aquando das legislativas de 1995 que, com a mudança de governo, levaram a alguma reorientação da política. De qualquer modo, havia equilíbrio das contas externas e as contas públicas voltavam à trajectória de melhoria que permitiu, já no final da década, a adesão ao euro, após mais de meia década no mecanismo de taxas de juro do sistema monetário europeu (precursor do euro).
Neste cenário favorável desenvolviam-se, todavia, vários fenómenos que viriam a colocar problemas ao crescimento português mais à frente. Em primeiro lugar, a queda dos regimes comunistas no Centro e Leste da Europa levou à liberalização e abertura das respectivas economias, e vários destes países passaram a concorrer mais directa e fortemente com Portugal no comércio internacional, nomeadamente intraeuropeu e, por outro lado, a atrair capitais e investimento directo estrangeiro a partir dos países mais ricos da União Europeia. Alguns sectores sentiram fortemente essa concorrência logo desde meados da década de 1990. Por outro lado, a política deliberada de favorecimento de investidores portugueses nas privatizações em conjunto com a fraca capitalização daqueles, levou à fragilização de muitos dos grupos que entretanto surgiram, o que não deixou de ter consequências nos anos seguintes e amplificou algumas das sequelas da grande crise por que o País passou após o resgate de 2011.
Entre 1995 e 2000, a política económica mudou nalgumas áreas, embora se mantivesse o objectivo já presente anteriormente (pelo menos desde 1993, aquando da entrada em vigor do Tratado de Maastricht) de adesão à nova moeda europeia logo no “pelotão inicial”. Após 1995, intensificou-se o aumento dos salários da Função Pública e das pensões, deu-se uma entrada muito significativa de novos funcionários no quadro da Administração Pública, a receita fiscal cresceu por via da melhoria de funcionamento da máquina fiscal e dos efeitos do crescimento económico ocorrido entre 1995 e 2001 e os juros desceram significativamente ao longo do período, à medida que aumentava de probabilidade o acesso de Portugal ao euro. Por outro lado, ocorreu uma queda abrupta da dívida pública por amortização de partes da mesma com os recursos de um amplo programa de privatizações. O saldo global foi convergindo para os limites necessários à entrada no euro logo em Janeiro de 1999, mas também aqui com fragilidades que, ao mesmo tempo, a União Europeia não quis relevar: muito do progresso devia-se à redução da dívida devido a uma venda irrepetível de activos empresariais públicos.
Como já se referiu, entre 1995 e 2000 e na maioria dos anos que se lhe seguiram, a evolução dos salários suplantou a da produtividade do trabalho, já de si baixa no momento inicial, tanto em 1986 como ainda em 1995. Esta tendência, ao tempo largamente condicionada pela política salarial da função pública, levou a um aumento sustentado e significativo dos custos unitários de trabalho, reduzindo a competitividade da economia, com efeitos sobretudo visíveis no sector de bens transaccionáveis. Sendo, à época, a economia portuguesa extremamente exposta à concorrência dos novos aderentes à UE e mesmo dos novos aderentes à Organização Mundial do Comércio situados no Extremo Oriente, com elevada prevalência de actividades em sectores onde os custos unitários de trabalho são o principal determinante da competitividade, o agravamento relativo dos custos unitários de trabalho expôs ainda mais as debilidades competitivas do tecido produtivo nacional. Essa debilidade resultou num agravamento crescente do défice da balança de mercadorias, nunca compensado pelos demais componentes da balança de bens e serviços, com o consequente aumento galopante da dívida externa ao longo deste período e da maioria dos anos que se lhe seguiram até 2011, quando o endividamento externo de empresas, famílias e Estado se tornou não refinanciável sem ajuda dos parceiros da União Europeia e do FMI.
Para a maioria dos anos entre 1995 e 2011, o endividamento progressivo do País coincidiu temporalmente com a quebra da taxa de poupança para níveis historicamente baixos. Como as empresas estavam descapitalizadas, o Estado apresentava sucessivos défices e a pressão para a sua degradação manteve-se como uma realidade até 2011 e, ainda, as famílias encontravam-se particularmente endividadas, a crise de 2011 decorreu do excesso de endividamento público mas também privado. Em 2008, as empresas não financeiras (ENF) endividaram-se ao exterior em mais de 10% do PIB, valor que caiu para menos de 4% em 2011, sendo que em 2013 e 2014 se registaram pagamentos líquidos ao exterior de quase 1% do produto. Já a dívida total das ENF chegou a suplantar 140% do PIB em Dezembro de 2012, altura em que o endividamento das famílias atingia quase 130% do PIB e a dívida pública caminhava para os 130% do PIB a que entretanto chegou poucos anos depois.
Ou seja, o modelo de crescimento adoptado entre 1996 e 2011 levou à consolidação de uma série de desequilíbrios em função da falta de competitividade da economia portuguesa e do erro que Constâncio impôs aos seus correligionários, que governaram o País a maior parte desse tempo, de que tais desequilíbrios eram irrelevantes numa zona monetária. Assim se acumularam elevados stocks de dívida nas várias classes de agentes – famílias, empresas e Estado – que se tornaram não financiáveis quando, após a crise de 2008, se intensificou a aposta errada novamente sob o beneplácito de Bruxelas. Quando surgiu a incapacidade de financiar as administrações públicas no mercado da dívida pública em 2011, resultou inevitavelmente que todos os sectores perderam acesso ao financiamento. O resto da história é conhecida: um plano de reformas e consolidação orçamental como contrapartida do financiamento institucional que dominou a maior parte desta década pela profundidade dos ajustamentos que todas as classes de agentes tiveram de realizar, quer no sector público, quer no sector privado.
Sendo hoje a dívida pública ainda muito significativa, tendo parado o ímpeto reformista do início da década e tendo os portugueses optado por “rigidificar” a despesa pública desde 2016, é patente que o próximo arrefecimento europeu vai chamar a atenção de que, ao contrário do que aconteceu após a crise de 1983-85, em que a memória dos erros prevaleceu por mais de uma década, o rápido esquecimento das causas da crise de 2009-2013 logo em 2016-2019 vai ter um preço elevado. Agravado por uma demografia menos favorável, um menor espírito de união dos nossos parceiros e muito menores instrumentos de intervenção autónoma. Para quem goste de emoções fortes, o futuro promete.
Artigo publicado originalmente na edição de Julho, dedicada aos 30 anos da revista EXAME