Manuel Barbosa de Matos nasceu em Lisboa, mas foi em Santo Tirso, entre o Ave e o Vizela, que cresceu. Fundou a editora Amor Fúria e foi figura central de uma geração da música portuguesa, dos Golpes a Manuel Fúria & os Náufragos. Em 2022, reinventou-se com Os Perdedores. Publicou textos na Rádio Renascença e no Público, mantém um Substack (O Vale Era Verde) e assina a crónica Odeio Futebol Moderno na Tribuna Expresso. Agora, escreve também para a Visão.
O medo e as férias
Permita-me, o leitor, o seguinte. Já mergulhou sozinho no mar alto? Eu já. Muitas vezes. E é cada vez pior. Sinto um aperto no peito, uma angústia animal, uma náusea que não é física. Ali, entre o coração e o pensamento
O Currículo e o Território
A educação sexual é uma máquina de cinismo. Fala dos corpos como se fossem conteúdos de Geografia: localização, utilidade, rendimento. É um programa de desintegração moral que rompe o vínculo entre desejo, responsabilidade e família. É, em suma, o nome que se arranjou para designar uma fase preparatória para a pornografia. Ponto
Pim! Pim! Pim!
Não é preciso ser perito em análise de discurso. Basta estar acordado. Ouvir a entoação, contar os minutos de antena, medir a subtileza com que um é interrompido e o outro é amparado. O moderador não precisa declarar nada. A parcialidade está nos gestos. Está no silêncio. Está nos olhos. Está, às vezes, na falta de chá
Diogo Jota, a Doutrina da Ressurreição dos Corpos e a Indispensabilidade da Presença
É que há aqueles que pensam, e muitas vezes dizem sem vergonha, “eu não gosto de funerais”. E não põem os pés no cemitério. Dizem-no com aquele ânimo de que não é nada com eles. O que é verdade; não é, de facto. Mas é esse o ponto
A Idade do Meio
Já vos disse que tenho horror a lugares-comuns. Em todo o caso, repito e acrescento: o mais ordinário dos lugares-comuns modernos é chamar “medieval” a tudo o que se quer odiar sem ter de puxar pela cabeça. O Chega propõe o restabelecimento da guilhotina — medieval. O Irão apedreja mulheres — medieval. Um pai esbofeteia o filho — medieval. Um sacerdote menciona o Inferno — medieval, medieval. É o bingo da cretinice, alimentado por uma única coisa: metáforas preguiçosas
Corpos
É essa ideia que justifica que se “faça” coisas com o corpo. Como vendê-lo, por exemplo. Mas o corpo não é um objecto. É um sujeito. Somos nós, no mais íntimo, no mais público. Por isso não prostituímos o corpo. Prostituímo-nos. Nem fazemos um desenho no corpo. Desenhamo-nos. Não acrescentamos silicone ao corpo. Acrescentamos mentira. Se o negamos, negamo-nos a nós
Toda a ferida é uma abertura
Era isto que eu queria dizer à Lídia Jorge, se a encontrasse no tal bar, de chão pegajoso e a cheirar a tremoço. Veja o Brian Wilson, Lídia. A vida doeu-lhe, mas não se pôs com manifestos. Escreveu música. Surf, árvores e alpendres. Pequenos lugares contra o colapso. Veja Portugal. Com as suas faltas. Com as suas vitórias. Nada de extraordinário. Veja bem: se não fosse isso, seríamos outra coisa. E depois insistiria: todo o sofrimento é uma hipótese de abertura
Um caso perdido
É como nascer a chamar-se Aleluia. Ou Apocalipse. Num país de tostões, alguém chamar-se Milhão é uma bofetada. Um atentado à modéstia nacional. Mas a verdade é esta: tudo nele começa e acaba no nome
Gouveia e Casca
É que em Gouveia e Melo, tudo é casca. Qualquer coisa “entre o socialismo e a social-democracia”. Parece navegação. Parece conteúdo. Mas é casca. Rígida, flutuante, talvez até decorativa. Gouveia e Melo é a concretização possível de uma piada do Herman José. Uma personagem que fugiu para o mundo real
O Uber da Maria da Fonte
Portugal está xucro. Há um delírio que domina os jornais, as televisões e o resto. Fala-se do país como se o país fosse uma tertúlia. Um seminário de diversidade. Não é
Peso, pausa e postura
Uma inclinação antiga, como um joelho que se dobra sozinho: “arranjem lá quem trate disto e deixem-me estar quieto no meu canto.” Nesse sentido mais restrito, todo o português é monárquico. Sempre foi. Sempre será. Prefere que uma figura de bom porte tome conta das coisas. Quer ordem com dignidade. Quer mandar obedecendo
Sonhos de fim do mundo
Peço, leitor, que me desculpe. Que me desculpe se trabalha com queijos ou chouriços, que não me leve a mal se tinha um voo para apanhar, ou se ficou preso no metropolitano. A minha alegria foi, talvez, uma indelicadeza
Hologramas de santidade e pobreza
Hoje, o silêncio é suspeito. Há dois modos de fugir à realidade de Francisco: exaltá-lo como símbolo. Amá-lo como ilusão. Ambos o usam. Ambos valem mais para nos fazer sentir bem do que para nos obrigar a mudar de vida
Luz e trevas
Durante anos, filmei com câmaras velhas. Super 8, Hi8, o que houvesse. Achava bonito, claro. Mas mais do que bonito, era suportável. Havia ali misericórdia. Tal como os corpos precisam de roupa, o mundo precisa de um véu
Balas de Prata
Somos todos crianças com um telefone na mão. É um mal muito democrático. Passamos uma hora a olhar para o vazio e juramos que é importante. Falar disto como se fosse problema exclusivo dos mais novos é um erro. Não é. Se um pai está a olhar para o telefone em vez de estar a fazer um desenho, o filho não vai querer desenhar
A última caminhada
Hoje tudo tem de ser sexy. As causas têm de ser sexy. A ecologia é sexy. A Ucrânia é sexy. O aborto não. O aborto é o mais anti-sexo que existe: por destruição simbólica. Porque o aborto é corpóreo. É grotesco, suja, tem cheiro. Envolve sangue, sofrimento, consequência. O aborto vem dizer que o prazer não é um fogo-fátuo que desaparece por si só. Que há um depois. Que o sexo pode matar. E ninguém sabe lidar com isto. Dá um péssimo 'tote bag'
Um dos nossos
Esta crónica não é sobre o caso Montenegro. É sobre a diferença entre ver Portugal como Eça ou como Camilo. Eça ironizava o País. Camilo sofria com ele. Eu prefiro o segundo. Portugal não se explica com indignação elegante. Explica-se com vinho, filhos ao colo, e o Eugénio a dizer: “Fechar? Fechar para quê?” O País não se corrige. Reconhece-se
A beleza de estar calado
O artista de hoje não deixa nada por fazer. Ele age por todos nós. E, assim, a única resistência possível é a quietude
Uma vida de almoço
Mas quem leva mais a sério o almoço? Os que compreendem que a mesa não é um acessório, mas um centro de operações. Melhor: quem leva mais a sério esse pináculo existencial que é sentar-se à mesa e atacar um bacalhau assado com batatas a murro? Os que sabem que um almoço não se reduz à comida, mas à vida que ali acontece