“Os incêndios só ocorrem se uma mão humana, voluntariamente ou por distração, os tiverem provocado. São as nossas mãos.” António Costa fez esta declaração aos jornalistas, durante uma visita à sala de operações da Unidade de Emergência da Proteção e Socorro da GNR, em Coimbra, para acompanhar o combate aos fogos.
É verdade que todos os incêndios são provocados pela atividade humana? A resposta é dada pelos relatórios de incêndios rurais do ICNF (Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas). Segundo o 8º relatório provisório de 2021, foram investigados 6.438 incêndios, entre 1 de janeiro e 15 de outubro, dos quais 4.327 tiveram investigações conclusivas. Resultado: 98% dos fogos ocorridos entre 1 de janeiro a 15 de outubro foram causados pela atividade humana e 2% deveram-se a causas naturais (queda de raios). Mas a “mão humana” direta a que António Costa se refere, voluntária ou por distração (queimas, queimadas, fogueiras e incendiarismo), representou, no ano passado, 70% do total. Pouco mais de dois terços.
Mais relevante do que avaliar o que aconteceu o ano passado, no entanto, é analisar as médias da última década. Entre 2011 e 2020, só 1% dos incêndios tiveram origem em causas naturais (raios). Curiosamente, entre 2011 e 2017, a média ficou sempre em 1% (com 2012 a ficar em 0%, ou seja, abaixo de 0,5%); de 2018 a 2021, todos os anos tiveram médias de 2%, o que mostra que as causas naturais cresceram, ainda que não seja possível tirar conclusões de um espaço temporal tão curto.
Portanto, 99% dos incêndios têm origem na atividade humana. Mas os relatórios do ICNF permitem-nos uma análise mais fina às causas. E não, a maioria dos incêndios não tem por trás mão criminosa: só 28% são provocados por incendiários (sendo que as causas mais comuns são vinganças). O uso do fogo – queimas, queimadas e fogueiras – representam 41% das causas dos incêndios. Neste grupo, as queimas e queimadas de sobrantes são a maioria (23%), seguidas das queimadas para gestão de pasto (10%), as fogueiras (6%) e as queimas de lixo (2%). No caso das fogueiras, é possível que estejamos a assistir a uma mudança comportamental dos portugueses: até 2016, representavam entre 6% e 10% das causas, mas de 2017 para cá nunca passaram de 1%.
Feitas as contas, na média 2011-2020, 69% dos incêndios têm origem na tal “mão humana” a que o primeiro-ministro se referiu.
Os 30% que restam distribuem-se por “transportes e comunicações” (faíscas de comboios, linhas elétricas que caem…), com 3%, e “uso de maquinaria” (máquinas agrícolas, sobretudo), com outros 3%. Neste caso, podemos considerar que há aqui mão humana, o que eleva a proporção para 72%. “Reacendimentos de incêndios” são 17% e “outras causas” (que podem incluir beatas de cigarros, por exemplo), 8%. Mais uma vez, é possível acrescentar alguns pontos percentuais a outras “mãos humanas”, mas o relatório não discrimina estas causas.
CONCLUSÃO:
ENGANADOR
Embora tecnicamente não se possa dizer que “os incêndios só ocorrem se uma mão humana, voluntariamente ou por distração, os tiverem provocado”, uma vez que 1% dos incêndios foram espoletados por raios, a verdade é que 99% têm origem na atividade humana, pelo que o espírito da afirmação de António Costa se pode considerar certo, no sentido em que não tiveram causas estritamente naturais.
Por outro lado, o primeiro-ministro parece dar a entender que os incêndios começam todos “voluntariamente ou por distração”, o que não é rigorosamente verdade, mesmo quando falamos de atividade humana. Por exemplo, uma faísca de comboio a travar na linha não cabe em nenhuma das categorias, mesmo que seja, metaforicamente, “mão humana”. E um incêndio causado por uma linha elétrica pode, em última análise, ser provocado por uma cegonha a chocar com uma linha de alta tensão (ainda que a “culpa” caiba, obviamente, do Homem, por lá ter posto a linha).