Rute Agulhas, 42 anos, trabalha há 18 como psicóloga e a temática dos abusos sexuais sempre fez parte da sua vida profissional. Há cerca de 15 anos começou a aperceber-se de uma falha no sistema: “Faltavam materiais específicos na área da prevenção. As pessoas reconheciam a importância do tema, mas não sabiam como pegar nele”, explica à VISÃO Solidária.
Há dois anos, surgiu a oportunidade ideal para ajudar a resolver o problema: uma das suas alunas do mestrado em Psicologia Comunitária e Prevenção de Menores (ISCTE-IUL) mostrou-se interessada em realizar a tese final na área da prevenção do abuso sexual.
“Nas aulas falava-lhes muito deste meu interesse e de como em Portugal a questão ainda não tinha a expressão merecida. Por isso, aceitei logo a proposta da minha aluna”, contou à VISÃO Solidária a docente universitária.
À professora Rute Agulhas e à aluna Nicole Figueiredo, 24 anos, juntou-se Joana Alexandre, 39 anos, habituada a coordenar teses de mestrado na área.
Agora, surgem “As Aventuras do Búzio e da Coral”, um jogo de tabuleiro que ajuda a prevenir situações de abuso sexual de crianças.
Jogar para prevenir
O jogo é recomendado pelo Centro de Estudos Judiciários, pela Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco e pela APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (a instituição escolhida para receber parte dos lucros das vendas).
Com o mar como cenário, um menino chamado Búzio e uma menina chamada Coral abordam as temáticas do corpo, do toque, dos segredos, do sim e do não e também a segurança na internet.
Abordar o contexto online suscitou algumas dúvidas às investigadoras, já que em teoria uma criança de 6 anos não tem um telemóvel… “Mas na prática sabemos que têm e não podíamos ignorar isso”, relembra Rute Agulhas.
Sem nunca recorrerem a linguagem sexual explícita, Búzio e Coral propõem atividades de desenho, mímica, descodificação de mensagens, identificação do corpo humano e avaliação de bons e maus segredos. A criança participa ativamente no jogo, sem ser uma mera ouvinte da lição.
Há 84 atividades divididas entre o nível um – o “mar das conchas” – e o dois – o “mar turbulento”. A coordenadora do projeto diz tratar-se de “um jogo para se ir jogando, um desafio a médio prazo”, que pode ser interrompido ou voltar a ser jogado sempre que se quiser.
Tem de haver sempre um adulto envolvido no jogo, mas não é necessário que seja um técnico especialista no assunto, pode ser o pai, a mãe, o irmão, a tia ou qualquer outra pessoa. Mas, para que esteja à altura do desafio, é convidado a ler a “Bússola” antes do jogo, uma espécie de manual de instruções para estar apto a responder às dúvidas das crianças.
Os principais destinatários do jogo têm entre 6 e 10 anos. As psicólogas optaram por esta faixa etária por ser aquela com maior incidência de suspeitas de abuso sexual.
Podem jogar ao mesmo tempo, no máximo, quatro crianças. Diminuir o número de jogadores é uma forma de garantir maior intimidade para a partilha de sentimentos. “A criança é levada a refletir, a falar de si própria e por isso não deve ser jogado com a turma inteira”, explica a docente do ISCTE-IUL.
Informar adultos e crianças
A iniciativa divide-se em duas vertentes: aumentar o conhecimento sobre o tema (entre adultos e crianças) e promover competências, ensinando os jogadores a lidarem com situações de perigo.
“Se ensinamos as crianças desde pequeninas a atravessarem nas passadeiras, a não porem o dedo na tomada ou a participarem em simulações em caso de sismo, não faz sentido que não se fale de abuso sexual”, defende a psicóloga.
‘As Aventuras do Búzio e da Coral’ não são um instrumento de diagnóstico, mas sim de prevenção. No entanto, essa hipótese não deixa de estar em aberto: “Uma criança que esteja a sofrer de abusos pode encontrar no jogo um espaço para falar do assunto, já que é criada uma atmosfera propícia. Fala-se de toques, do corpo e de segredos que têm de ser contados”, afirma a coordenadora da iniciativa.
Mas o projeto destas três psicólogas não termina aqui. Durante alguns meses, vão continuar a testar o jogo junto de escolas e outras instituições para avaliarem o que precisa de ser melhorado. Só depois desse processo, a partir de setembro, é que avançam para o desenho e construção dos próximos projetos que completam a coleção ‘Vamos Prevenir!’, da qual faz parte este jogo, e que irá incluir outro jogo adaptado à faixa etária dos 3 aos 6 anos e uma aplicação de telemóvel gratuita para adolescentes.
Tudo em nome da prevenção e dos segredos que devem ser contados.
Abusos em números
Em 2015, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, foram feitas 1044 participações à polícia de abuso sexual de crianças, adolescentes e menores dependentes. Este valor representa um aumento de 3,1% em relação ao ano anterior, em que já se tinha verificado uma subida de 17,7%.
Mais de 60% das vítimas têm entre os 8 e os 13 anos, 19,9% têm entre 4 e 7 anos e 7,4% até 3 anos. As vítimas são, na maior parte dos casos, meninas (79,3%).
Segundo o mesmo relatório, em 2015 foram detidas 150 pessoas por abuso sexual de crianças. Os arguidos são maioritariamente homens dos 41 aos 50 anos. Em pelo menos 40% dos casos o alegado autor do crime é familiar da vítima.
Nos últimos cinco anos, a Polícia Judiciária investigou mais de 7 mil casos, o equivalente a uma média de quatro situações de abuso por dia.