Chegam já a noite vai alta, sujos e cansados. Com fome, sede e muito frio. Amontoados num barco de borracha tão fina que parece de brincar.
Nem imaginamos como vieram até ali, a quarenta milhas da costa da Líbia, horas infindas de mar, à deriva.
Quando lhes estendem o quebra-costas, a escada de corda do navio-patrulha chamado a recolhê-los, quase se atropelam a ver quem a alcança primeiro. Seguem-se alguns gritos: “Mulheres primeiro.” Elas sobem.
Três. São encostadas ao fundo do convés, agora transformado em acolhimento de emergência. Depois entram eles. Um desata num choro convulsivo, nos braços de um dos polícias que lhe faz a revista. “Tenha calma, está tudo bem.” Um miúdo com uma T-shirt de Neymar, craque do Barcelona, é o último a deixar o bote. Tem 20 anos e vem do Senegal. Deixou a irmã e os pais na aldeia. Não tinham nada, nem nada a perder e fez-se à estrada. Há três meses que Moussa Baldé fazia uns biscates no porto de Dacar. Quando arranjou o suficiente para dar o salto não hesitou. “Agora, quero ir trabalhar e mandar dinheiro para a família.” Quando posa para a fotografia que o irá identificar nos ficheiros da imigração, resume o estado de espírito de quem acaba de ser salvo, num gesto: um v de vitória, desenhado pela mão junto ao coração.
Foi, como todos os outros, revistado de alto a baixo. As autoridades procuram armas e documentos. Encontram um pouco de tudo de latas de atum a escovas de dentes, até papéis com rezas, embrulhadas em plástico e escondidas no forro dos casacos.
Um dos polícias do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras a bordo junta tudo num monte.
Um outro atribui-lhes uma pulseira com um número. Quer ainda saber de onde vêm.
A lista parece desenhar várias rotas para lá do deserto: Senegal, Mali, Gâmbia, Nigéria, Guiné-Bissau mas também Eritreia e Somália. Depois, vem o médico fazer-lhes perguntas, para despistar qualquer caso de sarna ou tuberculose entre eles a razão para que todos estejam a recebê-los de luvas e máscaras, apesar de serem, os que aqui conseguem chegar, os mais resistentes entre os que começaram a viagem. Enquanto se vão alinhando no chão, guardados por fuzileiros, estendem os braços para receber mantas térmicas. E sopa, um caldo-verde bem quentinho, à portuguesa.
Estamos a 44 milhas a noroeste da cida- de de Misrata, na Líbia, são duas e meia da manhã. Ao longe, o bote parecia ter uma dúzia de pessoas. Feita a contabilidade final, somaram-se 89, uns por cima dos outros.
Não é a primeira vez que o patrulha oceânico português Viana do Castelo é chamado a salvar pessoas, no Mediterrâneo ainda na semana anterior, tinham resgatado três outras balsas daquelas, com um total de 403 passageiros. Não haveria de ser a última, neste último mês, enquanto patrulhou uma área de 170 milhas a sul da ilha de Lampedusa.
Foi um início em grande ao serviço da Triton, operação conduzida pela agência Frontex, que controla as fronteiras da União Europeia (UE), tentando conter os fluxos migratórios no Mediterrâneo.
Os dias de ondas altas são, apesar disso, os mais calmos. Mal há previsão de mar chão, chovem os pedidos de ajuda a partir do centro de socorro em Roma. Foi assim naquela terça-feira, 25, mal o Viana do Castelo largou do porto de Lampedusa. “Alerta, há um contacto a 30 milhas da costa de África”, ouve-se nos intercomunicadores do navio.
E rumamos a sul.
Em simultâneo, decorriam outros sete resgates. Em média, são salvas mil pessoas por dia, contando com todas as embarcações a operar na zona. Para quem arrisca a vida, aquele é só mais um último balanço em águas fronteiriças, antes de pisarem o chão firme europeu. Não querem nem pensar em morrer na praia: o mesmo mar que se fez cemitério da fortaleza europeia dá-lhes também esperança. Em dose igual.
Tão perto, tão longe
Há mais de 20 anos que estes boat people se têm feito ao caminho. Primeiro, em número reduzido. Nos últimos tempos, aos magotes.
Vêm empurrados por uma esperança renovada, desde a Primavera Árabe, essa onda de revoluções e protestos que alastraram no Magrebe e no Médio Oriente, depois de dezembro de 2010. Entretanto, deu-se um imenso e repetido massacre no mar. Este ano, já se bateram todos os recordes 160 mil salvamentos e mais de 6 500 mortes, números do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. E ainda falta um mês para 2015. Os que sobrevivem seguem para o calvário seguinte.
“Ainda ontem levei mais um avião cheio de gente para um dos centros de emergência da Sicília”, conta Giovanni Tato, piloto que faz um dos voos diários entre Palermo e Lampedusa. Estamos na Via Roma, a principal rua da ilha, vazia e silenciosa. Custa a acreditar alguma vez ter estado a transbordar de sobreviventes dessas travessias do mar. Giovanni convida-nos a ver o vídeo que postou no YouTube há um ano. Um filme feito à socapa, com a câmara de um telemóvel escondido no bolso. O centro de acolhimento tinha três vezes mais pessoas do que a sua capacidade e quem quisesse saía à vontade.
Pouco depois, o mundo viu gente nua a ser lavada à mangueirada, o centro pegou fogo e as portas foram fechadas. Agora, para lá das grades e de um cão pachorrento, avistam-se apenas alguns militares e uma grua das obras que se diz estarem a decorrer.
Os centros da Sicília e da Catânia são os atuais destinos de quem ali chega.
É um drama agravado, desde a atualização da Convenção de Dublin, aprovada pela UE em 2008, para impedir que refugiados peçam asilo em vários países. Desde então, as candidaturas só podem ser apresentadas no país aonde chegam. E se vieram de uma nação em guerra. Ou, então, sem documentos, mas nunca antes de pisarem solo Schengen.
Crianças e mulheres sozinhas também não são repatriadas. Enrolados nesta armadilha, milhares fizeram do Mediterrâneo boia de salvação e cemitério. Desde esse mesmo ano de 2008 que, à entrada do porto de Lampedusa, se ergue a instalação Porta da Europa, criação do artista plástico italiano Domenico Paladino, colocada no rochedo que guarda a ilha mais africana de Itália (fica a apenas 113 quilómetros da costa tunisina e a 127 da Sicília.), em memória dos mortos e desaparecidos no mar. Está junto de um farol abandonado e de um poste que, em tempos, hasteou uma bandeira. Hoje, é poiso preferido das aves.
‘Mare Nostrum’ e não deles?
Com 20 quilómetros quadrados, a ilha italiana de Lampedusa, que alberga apenas 5 mil habitantes, foi um dos principais destinos de desembarque destes clandestinos só este ano a chamada Rota do Mediterrâneo Central foi a porta de entrada de mais de 150 mil pessoas na Europa, números da Frontex. Segundo dados de várias organizações não-governamentais, morrem, por ano, em média, 2 mil pessoas a tentar chegar a um porto europeu. A maioria não sabe ao que vai, mas embarca, em condições sub-humanas.
Muitos desses barcos atolados acabam por naufragar. Os sobreviventes são encaminhados para os centros de emergência. Só lá deveriam ficar durante duas semanas, até serem transferidos para outros, destinados a quem pede asilo. Mas, com os múltiplos centros cheios, a espera pode prolongar-se.
Um primeiro apelo ao mundo já se tinha feito ouvir, no verão do ano passado, quando o Papa Francisco escolheu Lampedusa para a primeira viagem do seu pontificado, a primeira de sempre de um Papa àquela ilha. Mas só depois do desastre de outubro (três meses e meio milhar de mortes depois) é que Itália declarou estado de emergência, lançando a operação Mare Nostrum e triplicando os meios de salvamento no mar à sua frente. Um navio, duas fragatas, dois barcos-patrulha, aviões e helicópteros tentam evitar novas tragédias, resgatando quem encontram à deriva em alto-mar, mas também recolhendo impressões digitais que entregam à investigação policial. Depois do registo, caso a caso, as autoridades italianas decidem quem tem direito a ficar e quem não tem. Grande parte é repatriada.
Um cemitério de barcos…
A Praia dos Coelhos, em plena reserva natural de Lampedusa, é também o local aonde chegaram os sobreviventes dos grandes naufrágios de há um ano. “Sim, foi aqui”, anui Giuseppe, o guarda da natureza, enquanto aponta para a baía, lacrada com um cordão e uns paus de madeira que parecem uma cruz.
Momentos depois, encolhe os ombros. E faz-se silêncio, um silêncio que se há de repetir, uma e outra vez.
Numa rua junto do porto, os pescadores Pietro, Salvatore e Calogero remendam uma rede para poderem voltar à faina. São homens de poucas palavras: lembram-se bem dos tempos em que os barcos de pesca traziam gente do mar, todos os dias. Demasiado bem para quererem voltar a falar disso. Desde 2009 que arriscam ano e meio de prisão se ajudarem clandestini. Um calar das palavras partilhado até por Francesco Tucci, um marceneiro tão cheio de fé que apanhou a madeira dos barcos naufragados para as suas criações. Ficou famoso quando fez o altar em que o Papa ali celebrou missa. “Para chorar os mortos que ninguém chora”, recorda, enquanto nos mostra umas cruzes pequeninas, de trazer ao pescoço, feitas da mesma madeira. Depois abana a cabeça. Também ele não se vai alongar muito mais.
Mas esse passado que todos querem esquecer está mais que presente naquele cemitério de barcos que se estende ao longo do porto um descampado selado com uma rede, onde se escondem os despojos desses naufrágios. Por ali há sapatos sem par, colchões rasgados, madeira aos bocados. Há pedaços de redes e até um chapéu de menina, às florzinhas, tudo deixado para trás.
…e um museu das migrações
Outros pedaços daqueles naufrágios foram guardados pela Askavusa, a associação que nasceu em Lampedusa, em 2009, contra a presença de militares na ilha. À criação de um centro militarizado para acolher imigrantes, ripostou com um Museu das Migrações, onde se descobrem outros vestígios dessas viagens interrompidas, um misto de cassetes, fusíveis, comprimidos, tachos, biberões. Mas até esta se remeteu ao silêncio. Nem Giacomo Sferluza nem Annelisa, fundadores do coletivo, se prestam a declarações.
A presidente da Câmara, Giusi Nicolini, outrora tão solícita, agora também não aparece.
No muro do edifício camarário ainda lá está o grafito “Save the people not the borders” mas nada mais. O carpinteiro Matteo, colaborador da Askavusa nos tempos livres, avança a sua tese: “Vivem todos deste sistema, aqueles que vendem armas para uma guerra que depois obriga tanta gente a fugir.” Um ano após a tragédia que lançou as atenções sobre Lampedusa, a história repetiu-se, em Malta. Em meados de setembro, dois naufrágios terão causado a morte de mais de 700 imigrantes. A embarcação que partiu do Egito terá sido afundada pelos próprios contrabandistas perto da ilha, e a outra naufragou junto da costa líbia. Segundo contaram à Organização Internacional das Migrações dois sobreviventes, a embarcação de madeira que partiu do porto egípcio de Damietta transportava principalmente sírios, palestinianos, egípcios e sudaneses. Eram perto de 500 pessoas. Quatro dias depois, o barco foi afundado, porque se recusaram a passar para uns botes de borracha. Na costa da Líbia, a 20 quilómetros da capital, Trípoli, afundava-se outro barco com mais 200 passageiros.
Apenas 36 náufragos foram resgatados.
A esperança do ‘Triton’
Queixando-se de falta de ajuda do resto da Europa, a Itália acabou com a missão Mare Nostrum. ” Italy is full”, justifica Alessandro, o Guarda di Finanza a bordo do Viana do Castelo. Lançada a Operação Triton, a 1 de novembro, o objetivo agora é garantir que ninguém entra no território sem ser descoberto.
“Em risco de naufrágio, os imigrantes são salvos. Mas esse não é o objetivo da operação”, afirma a porta-voz da agência europeia Frontex, Izabella Cooper, a justificar que a vigilância nas águas de jurisdição europeia se deverá ficar pelas 30 milhas.
“Só avançamos para lá disso em situações de salvamento”, precisa Luís Silva, inspetor do SEF e oficial de ligação entre a Frontex, as autoridades italianas e os meios destacados para as operações no mar. Está há dois meses em Lampedusa. Segundo explica, é já claro que estas viagens são organizadas por redes que exploram quem quer deixar África, cobrando entre mil e 2 mil euros por pessoa.
Só que, agora, como já sabem que há vigilância apertada, o modus operandi alterou-se. Com combustível para um máximo de dois dias, os botes ficam à deriva. Saem sem sequer levar coletes de salvação, para que não ocupem espaço. Mas como quem gere a rede também sabe que precisa alimentar alguma esperança nos embarcadiços, para que mais lhes queiram seguir o exemplo, passou a muni-los de um telefone satélite: mal entram em águas sob a jurisdição da agência europeia pedem ajuda.
Logo que o contacto, como se lhe referem as comunicações militares, chega ao centro de operações em Roma MRCC, na sigla inglesa, este reencaminha o pedido de ajuda para a embarcação que estiver mais próxima. Desde o início da Triton contabilizaram-se mais de 6 500 pedidos de ajuda.
Chegam a ser 12 ao mesmo tempo. “Enlatar” pessoas em botes tornou-se o negócio mais rentável do mundo. “Um barco de pesca com 500 pessoas pode render um milhão de euros”, diz o inspetor do SEF.
É aqui que entra em cena o navio-patrulha Viana do Castelo, da Marinha portuguesa.
A preparar-se para chegar amanhã, sexta-feira, 5, a Lisboa, depois de um mês em missão na área, foi chamado por cinco vezes a resgatar pessoas junto da costa da Líbia. “Temos de dar uma resposta de esperança a esta gente”, sublinha Jorge Chumbo, o comandante do patrulha. “Não podemos deixar de lhes dar esperança de um futuro melhor.”
‘Express deluxe destiny’
O patrulha oceânico Viana do Castelo foi colocado num dos locais mais próximos da linha da frente. Em missão de salvamento, navega a uma velocidade de 15 nós (o máximo são vinte). Quem os espera nunca avança a mais do que 5 ou 6 nós. Quando lá chegam, encontram de tudo. Na embarcação de pesca, o primeiro salvamento, havia sírios e palestinianos.
Além de várias crianças e um bebé de meses, seguia ainda um médico que já tinha a mulher e os filhos na Suécia. No segundo resgate, no dia 17, um dos náufragos atirou-se do barco para se banhar no mar, cheio de felicidade.
Pouco depois, ainda tinham pessoas a bordo, e corriam a salvar mais.
Na semana passada, foi igual. Ainda não se decidira se os 89 candidatos a imigrantes recolhidos na noite anterior seriam entregues em terra ou a um navio italiano, já rumávamos a sul novamente. “Contacto às 45 milhas da costa africana.” Com sol é tudo mais fácil e assim deveria ser também no caso daquele resgate, mas, ao ser avistada a casquinha de borracha no meio do mar, ainda parece mais frágil. Desta vez, há quem traga colete salva-vidas. Há ainda quem tenha números de telefone escritos na roupa a esferográfica. Usam camisolas desportivas ou com nomes de marca Vuitton, Armani. tudo da candonga, traficado, como eles.
Outro apregoa na camisola: Express deluxe destiny, como se fosse uma mensagem encriptada.
Quando chega cá acima, já vem a chorar. É assim a vida desta gente feliz com lágrimas. Tal como Shelom, que parece uma adolescente mas já tem 21 anos. Embarcou com o marido. Ele é que tratou de tudo, ela diz não saber de nada. Vieram da Nigéria e pagaram mil euros cada um. “Só queria chegar”, conta ela. Encontramos ainda dois irmãos, Abdulah e Lemin Demphe, 16 e 17 anos, da Guiné-Bissau. Estão sentados na primeira fila da tenda de campanha, no convés.
Sabem que estão quase na Europa, mesmo que isso signifique serem entregues às autoridades italianas, uma comitiva imensa no cais de carga de Porto Empedocle, na Sicília.
Lançada a ponte para terra, saem aos dez de cada vez, descalços ou com os sapatos desencontrados. Há quem beije o chão, há quem estenda os braços num imenso adeus. “Obrigado por nos terem salvo!”