No topo de uma das galerias do estádio municipal de Oeiras, o átrio de acesso ao bar divide-se com um amontoado de móveis, peluches e livros. O espaço, que bem poderia ser uma galeria de arrumos, é afinal a sede da Solfraterno, uma associação de solidariedade criada há dois anos por Maria do Céu Cunha, ou Tia Céu, uma angolana de 46 anos nascida em Catete.
Os risos contagiantes de Tia Céu ouvem-se ao longe. O que acaba por dar jeito para conseguirmos chegar a esta mulher no meio do corredor apertado e atulhado de bens para doar a quem precisa e vender a preços simbólicos os “sóis”, de forma a aguentar o magro orçamento da associação. O trabalho não cessa de aumentar e os braços parecem poucos para tanta solicitação. Sempre que surge alguém com um problema urgente e na associação não há dinheiro ou bens suficientes, Tia Céu pega no telefone ou vai bater à porta de empresas e não as larga enquanto não reunir os apoios necessários.
A sua alegria, persistência e otimismo só podem ser a razão para, com tão pouco, conseguir dar a mão a 70 famílias.
“Desde pequenina que me lembro de ajudar os outros”, conta Tia Céu. “Cada pessoa tem a sua missão na Terra. Não está cá só para comer e trabalhar e este deve ser o meu papel.” Há cerca de um ano que se dedica em exclusivo à Solfraterno, após perder o contrato como cozinheira na Câmara de Oeiras.
‘Furacão solidário’
No relato da sua história, Tia Céu detém-se no momento em que, aos cinco anos, escapa à guerra civil angolana e acampa no aeroporto de Lisboa com a mãe, o padrasto e três irmãos. Apesar de tudo, recorda com saudades o sabor das bolachas distribuídas nas rações militares aos milhares de retornados que ali ficam. Ao fim de uma semana, a família é alojada numa pensão em Albufeira (Algarve), num movimento que se repete de dois em dois anos até chegarem ao vale do Jamor, Oeiras, onde centenas de pessoas tinham erguido casas ilegais. “Vivíamos de portas abertas, num clima de camaradagem em que os nossos bandidos tomavam conta das nossas casas”, lembra. “E havia sempre um vizinho disponível para tomar conta das crianças que não estavam na escola.” Mais tarde, em 1990, com o arranque do plano de erradicação de barracas no concelho e a construção de bairros de habitação social, Maria do Céu recebe as chaves de um apartamento a estrear em Caxias. É a partir daqui que o seu nome começa a ser ouvido nos gabinetes municipais.
Nos 20 anos em que ali residiu, os moradores habituaram-se a bater à sua porta sempre que acontecia algo. “Uma vez, os pais de uma menina estavam embriagados e a bater-lhe com um ferro. Cheguei lá e trouxe a menina, que ficou a viver comigo uns tempos até os pais jurarem que não lhe voltavam a fazer mal. Quando alguém morria, era também eu que tratava de tudo. E fiquei a arder com o dinheiro de dois funerais.” Vive agora em Carnaxide, ainda em Oeiras, onde rapidamente a sua fama de resolve tudo se espalhou. A mesma que levou amigos a insistirem com Tia Céu para que criasse uma nova associação de solidariedade.
Em conjunto com outras nove pessoas, os papéis e as burocracias não são, ali, impedimento para apoiar quem mais precisa.
“Como se pode pedir a um desempregado para ir gastar dinheiro em fotocópias ou ir buscar certidões?”, questiona Tia Céu.
A energia e rede de contactos que desenvolveu fazem agora da Solfraterno uma das organizações mais dinâmicas de Oeiras. Em apenas um ano, a associação passou de dez para as 70 famílias apoiadas e, diariamente, técnicos autárquicos encaminham novos pedidos de ajuda. E Tia Céu bate a todas as portas. Há pouco tempo conseguiu que uma churrasqueira lhe entregue, de forma gratuita, frangos temperados. Padarias fornecem pão e bolos, que depois os voluntários distribuem nos seus carros particulares.
Conversávamos com Tia Céu quando surgiu um casal, pais de Gonçalo, um menino de dez anos que já foi operado três vezes por causa de um tumor ósseo e que teve de retirar o maxilar superior. Estão a tentar juntar fundos para enfrentar as novas cirurgias que o pequeno tem de fazer pelo menos até aos 18 anos. Tia Céu dispõe-se a dar voz a Gonçalo e espalhar o pedido de ajuda. À entrada, chamam-na para almoçar. Mas enquanto se despede dos pais do rapaz e se prepara para fechar a associação por breves instantes, eis que surge uma carrinha com voluntários de um laboratório farmacêutico. Chegam carregados de comida e roupas. A ajuda não pode esperar.