Por trás do manto negro das beneditinas, a irmã Teresa Forcades i Villa é, diz o prestigiado The Guardian, umas das vozes, e uma das líderes, do “fragmentado Sul da Europa”.
Forcades era, até há bem pouco tempo, uma desconhecida. Mas, em 2009, publicou, no Youtube, uma denúncia da “falsa pandemia” da gripe A, acusando a Organização Mundial de Saúde (OMS) de entregar, de mão beijada, a apenas umas quantas grandes companhias farmacêuticas, a produção de uma vacina que descreveu como desnecessária e venenosa, mas em vias de se tornar praticamente obrigatória. Uma freira, médica e teóloga que se atreve a criticar a OMS, por esta ser financiada em 50% por companhias privadas e, talvez por isso, prosseguir alguns interesses menos claros, chamou a atenção.
Afinal, Forcades ficou a um passo de acusar a OMS de um crime de bioterrorismo, com o intuito de acabar com o problema do “excesso de população” do planeta mas fê-lo sempre com um discurso pausado, calmo, claro e com referência a fontes como o prestigiado New England Journal of Medicine, por exemplo.
Apesar de alcunhada de “paranóica conspirativa” e de “demagoga” por alguma imprensa espanhola, e de as suas denúncias não terem, para especialistas portugueses em pneumonologia consultados pela VISÃO, “credibilidade científica alguma”, o seu vídeo tornou-se viral na internet. Seguiram-se outros, onde denuncia o papel da Organização Mundial do Comércio, no fim da indústria dos medicamentos genéricos “ilegais” (por não respeitarem patentes), na Índia, um papel que, diz, custa a vida a milhões de seres humanos, e em prol de um único fim: o lucro de poucos. Resultado: a beneditina tem 12 mil seguidores no Twiter, é dona de 48 mil likes no Facebook e conta com centenas de milhares de visualizações do seu canal do Youtube.
Ídolos: Zizek e Chávez
Esta freira cita o polémico filósofo esloveno Slavoj Zizek (“Se algo caracteriza a cultura do século XX é a sua capacidade imaginativa e, no entanto, a maior parte das pessoas acredita que não há alternativa ao capitalismo”) e inspira-se no partido grego de extrema-esquerda Syriza. Defende que os pobres, na Venezuela de Chávez e Maduro, têm um sentido de pertença política (de facto, e apesar do óbvio populismo, o Chavismo foi um dos regimes mais bem sucedidos do mundo na luta contra a pobreza: de 20% da população, antes de Chávez, para apenas 7% agora), de saberem que “contam”.
Assim Forcades parece a muitos uma aberração algo que, simplesmente, não devia existir. As suas opiniões constituem, digamos, pecados capitais, por ser uma religiosa, e há refutações teológicas violentas das suas ideias, na blogosfera espanhola. Mas esta monja está a tornar-se num símbolo da luta antiausteridade “Este resgate (…) cujo nome correto seria fraude (…)” num continente dividido entre um Norte rico e um Sul pobre, e com uma esquerda sem rumo em que os sociais-democratas à antiga convivem com os neoliberais nos mesmos partidos ditos de “centro”. É, de certa forma, uma freira antissolidariedade, na medida em que entende que o direito a uma vida digna não passa pela caridade, mas pela afirmação.
Nascida em Barcelona, há 47 anos, filha de um agente comercial e de uma enfermeira, viveu na Praça da Liberdade, no Bairro Gràcia, naquela cidade catalã, com as suas irmãs, numa família que não era particularmente religiosa. Só tarde aos 15 anos descobriu os evangelhos. “Quando terminei, tive uma sensação de indignação”, disse ao diário português Público. “Vivi 15 anos sem saber isto?!” Tirou medicina na Universidade de Barcelona, teologia em Harvard, e especializou-se em Medicina Interna, em Nova Iorque, segundo se lê na sua página web. Doutorou-se em saúde pública, com uma tese sobre medicinas alternativas. Praticou medicina até aos 28 anos. Só então decidiu casar-se com Cristo e, mesmo assim, já teve de resistir a três paixões, como qualquer “pessoa casada normal”. No entanto, as ideias de tão moderna freira davam para fazer regressar à memória alguns temas do comunismo: “Catalunha fora da NATO”; “Independência nacional”; “Nacionalização da banca”; “Habitação condigna para todos” estes poderiam ser alguns dos seus slogans.
A obsolescência do capitalismo
A agenda de Forcades é tão intensa que, apesar de ter uma outra beneditina como secretária, é raro que passe um dia inteiro no seu quartel-general, o convento de São Bento, na Catalunha. O seu e-mail gasta mais tempo a responder automaticamente que está cheio do que a aceitar mensagens, enquanto a monja se desdobra entre as aulas de teologia, em Berlim, as manifestações de apoio aos trabalhadores da Telefónica espanhola e os programas de televisão em que participa, curiosamente alguns patrocinados por… bancos! Mas, como gosta de alertar, “criticar o sistema capitalista não é o mesmo que criticar o empreendedorismo ou a iniciativa privada”. “Não gostaria de viver numa sociedade em que fosse um comité central a promover o controlo social”, diz num dos seus numerosos vídeos, ao mesmo tempo que se assume como uma “empresária, em conjunto com uma pequena família” (as irmãs de S. Bento fabricam e vendem cerâmica, numa loja do convento).
A monja, adepta da teologia da libertação, defende o feminismo, o direito à ordenação das mulheres, os direitos dos homossexuais, e, até, a despenalização do aborto.
A sua crítica ao “capitalismo neoliberal selvagem” inspira-se, diz o Guardian, na “defesa cristã dos pobres”, notando, por exemplo, que é inadmissível que “o pão pague mais impostos do que a especulação financeira”.
E como explicar, por exemplo, a “obsolescência programada” dos bens de consumo o fim predeterminado dos aparelhos que usamos, como computadores, frigoríficos e máquinas de lavar que tantas empresas hoje praticam? “Há 50 anos, as coisas duravam mais e não menos. Os engenheiros são piores hoje?”, pergunta. “Não, não! É que se lhes pede que desenhem mal, que redesenhem algo que durava 50 anos de forma a que dure apenas três ou quatro. Para quê? Para vender mais.” Uma sociedade assim, comandada pela avareza, diz Teresa, não é só eticamente censurável como ambientalmente irresponsável.
“A minha convicção é a de que a perspetiva teológica cristã é capaz de fundamentar, hoje, uma noção de sujeito e uma praxis comunitária que desmascarem as falsas democracias que caracterizam as sociedades capitalistas ocidentais dos princípios do século XXI e as substituam por sistemas de Governo mais justos e mais eficazes.”
A república utópica
A freira declara-se radicalmente contra o discurso de que andamos a viver acima das nossas possibilidades “nem todos” ironiza, em declarações ao El País “Desde 2007, que as vendas de produtos de luxo não param de crescer”, afirma, e declara-se contra as medidas de austeridade traduzidas em cortes nos sectores da educação e da saúde.
“A crise económica em Espanha atingiu um ponto em que ameaça o tecido da sociedade.
Isto é algo que também aconteceu na Grécia. A precariedade da vida das pessoas avança com tal rapidez que elas não se lhes podem opor. O perigo de violência, de maneira não democrática, é uma possibilidade…” Este ano, o seu terceiro livro Sem Medo, escrito em conjunto com a socióloga Esther Vilas, foi, semanas a fio, o mais vendido na Catalunha. Nele, a “freira vermelha”, como lhe chamam os diários ingleses, defende que, “para mudar as coisas, há que perder o medo” e crítica ferozmente os partidos políticos: “Têm uma maneira de atuar que funciona contra a democracia de qualidade, a democracia real ou, simplesmente, a democracia”, diz. Conclusão: “Têm que mudar ou deixar de existir.” Porque andam de mãos dadas com o sistema económico “e se queremos a mudança, então há que desmontar a ditadura financeira”.
Assim, lançou, com o economista Arcadi Oliveres, uma plataforma cidadã que visa a independência da Catalunha pois acredita que, num território mais pequeno e homogéneo, os políticos terão vergonha e andarão menos distantes dos cidadãos, mas diz não querer nenhum lugar na política, nem formar um partido político: “Não seria beneditino e não seria para mim.” Essa “república anticapitalista” utópica não teria exército, mas, em contrapartida, seria verde, amiga dos imigrantes e “genuinamente participativa”. Uma democracia impossível? Teresa parece em paz com as suas aparentes contradições. Apesar de achar a vida no convento apelativa e de entender que, “historicamente, as mulheres experimentaram, muitas vezes, mais liberdade atrás dos muros de um convento do que no mundo real”, não se poupa a críticas às estruturas eclesiásticas: “A Igreja Católica, que é a minha Igreja, é misógina e patriarcal.
Isso tem que mudar o mais rapidamente possível.” E declara-se, até, em consonância com o Papa Francisco: “Vivemos uma vida de hamsters. Há que parar. Há que rezar. Defender os nossos espaços para nos ligarmos connosco próprios.”