Foi há 65 anos que, no dia 10 de dezembro, meia centena de Estados aprovou o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A 2ª Guerra Mundial terminara há apenas três anos e os Estados quiseram comprometer-se com a Paz, proclamando ao mesmo tempo que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
A Declaração tem inspirado múltiplos Tratados e Pactos Internacionais, os textos das Constituições em todo o Mundo transcrevem-lhe partes importantes e desde 1950, em 10 de dezembro celebram-se os Direitos Humanos, ao mesmo tempo que se rejeitam todas as formas de violência. É também nesse dia que é entregue o Prémio Nobel da Paz, em Oslo. Entre nós, a Assembleia da República assinala a data com uma cerimónia em que atribui um Prémio e uma medalha de ouro a instituições e personalidades que tenham dedicado a sua atividade ou a sua vida a essa causa maior. Mais uma vez, felicito todos os laureados, e destaco com satisfação o José António Pinto, que escreve também para a Visão solidária.
Este ano, as comemorações foram marcadas pela morte de Mandela, um dos mais fortes exemplos de luta pelos direitos humanos. Uma verdadeira inspiração.
É muito importante a consciencialização. Mas por vezes acho que estas cerimónias, em vez de alertarem e contribuírem para eliminar a violência, podem banalizá-la, se não estivermos atentos.
É que Dezembro é também um mês em que se registam muitas queixas de violência familiar e não devemos conformar-nos com esta violação tão humilhante dos direitos humanos.
Nos anos em que exerci funções nos Tribunais de Menores e de Família, pude aperceber-me dessa realidade, que só aparentemente será improvável, visto que as tensões e os conflitos familiares se agudizam quando há necessidade de dividir tempos e espaços.
Quando, além das discussões mais comuns, há também imposição, crescerá o mal-estar, sobretudo quando há um histórico de violência, pois que esta recrudesce sempre que há mais tempo em conjunto.
Mulheres privadas de contactar as suas famílias, obrigadas a permanecer onde o companheiro decide sem as consultar, crianças que passam o Natal ouvindo gritos e impropérios e que prefeririam a harmonia familiar aos brinquedos, são a face menos pesada de uma realidade que causa profunda dor, neste mês em que supostamente as famílias deveriam viver em paz. A mais grave, diz respeito a mulheres violentadas, quer a nível físico, quer sexual. Os relatos que ouço são quase sempre em soluços e parecem saídos de filmes de terror.
As mulheres vítimas de violência ficam marcadas pelo sofrimento durante muito tempo. Nos últimos anos, por esta altura, tenho ouvido depoimentos tão desesperados quanto assustadores, que decorrem da verdadeira incoerência legal que as desprotege de novo, nos processos de regulação das responsabilidades parentais.
Terminou já em Dezembro o Projeto Themis que a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas desenvolveu e que se destinou a apoiar vítimas de violência doméstica. No decurso do Projeto, face às evidências da efetiva desproteção destas duas centenas de mulheres, a APMJ decidiu iniciar um estudo sobre a forma como decorrem os procedimentos legais nas Ações de Regulação, porquanto havia indícios, de acordo com dados empíricos fornecidos por atendimentos na APMJ e noutras Organizações de apoio a Mulheres, e também no Instituto de Apoio à Criança, de que estas se mostravam surpreendidas e inconformadas por se terem sentido desconsideradas e também muito prejudicadas porque a violência devastadora que tinham sofrido não era tida em conta.
As conclusões do Projeto Themis foram justamente nesse sentido: Os Tribunais de Família ignoram ou desvalorizam os factos que nos Tribunais Penais são considerados graves e suficientes para que o Estatuto de vítima de violência doméstica lhes seja atribuído. Parece que, por vezes, se pretende exigir às mães vítimas de violência que caminham na rua cheias de medo pela sua integridade e pela sua vida, que se apresentem sorridentes e despreocupadas no Tribunal, como se, por encanto, pudessem riscar da sua memória todo o sofrimento e aceitar os convívios dos agressores com os filhos, sem quaisquer restrições.
Apesar de Portugal já ter ratificado a Convenção de Istambul, que no seu artº 31º preconiza justamente que a violência doméstica deve ser considerada nos Processos de guarda de crianças, o certo é que está a revelar-se muito difícil este reconhecimento em diversos Tribunais.
Pobres mulheres e pobres crianças! Os homicídios são a face mais visível da violência, mas há outras formas muito cruéis e perversas também, que conduzem a um estado de terror que não pode ser desprezado.
Lembro-me bem quando cheguei a Setúbal no início da década de 80. As alterações ao Código Civil tinham acabado com a figura do Chefe de Família e as mães chegavam com as crianças pela mão, que vinham pedir à Srª Drª para ficar com as suas mães. Os pais violentos nunca se conformaram com isto. Pois se não respeitam o ser humano que lhes deu filhos, como aceitar que elas ficam com a guarda? Creio que a tese da “alienação parental” está a servir-lhes os intentos às mil maravilhas: “Vais embora, mas não te darei tréguas. Hei-de tirar-te o filho!” Quando estive no Tribunal de Família, observei que alguns pais que invocavam a depressão das mães e pediam a guarda, tinham sido, afinal, agressores. Da violência física, tinham passado, portanto, à psicológica.
Tenho observado que esse mesmo tipo de violência está a ser muito utilizado pelos pais agressores, mas agora de uma forma mais sofisticada. Continuam a chamar-lhes “perturbadas”, “alienadas”, e desta vez com uma tese que serve na perfeição os seus intentos… As mulheres vítimas de violência veem assim o seu Natal transformado num pesadelo. Privadas dos filhos, é-lhes negado o seu direito à recuperação psicológica. No Natal, os Direitos Humanos assumem mesmo contornos especiais, mas sempre, como em todos os momentos, é necessário apurar se esses direitos se concretizam. Senão, tudo será apenas miragem, num vazio insuportável, antónimo de respeito pela dignidade humana, em oposição ao significado mais profundo dos Direitos Humanos.