Há um ano, a 12 de setembro de 2012, nascia formalmente o Coração na Rua, aqui pelas ruas do Porto.Todos os amigos que se uniram a esta causa foram e são a base do nosso “trabalho”. Sem eles, nada seria possível. Se uns vão para as ruas, outros cozinham, outros dão os alimentos, passam a palavra, ajudam das mais diversas formas. Graças a cada Coração é que a nossa ajuda foi alargada: começámos com leite e chocolate e umas sandes e nesta altura já servimos 450 refeições completas. Se gostamos? Gostamos de saber que alguns já despertaram para a solidariedade e ajudam enquanto podem. Não gostamos que o número tenha aumentado assim tão drasticamente. Antes não fosse necessário contar as peças de fruta, os kits, os sumos… Como seria bom. Era sinal que não haviam pessoas nas ruas. Mas a verdade é que as há, e ai meus amigos se não fossem vocês!
Se muita coisa mudou? Sim, mudou, mas ainda há muito para mudar e como é urgente que essa mudança aconteça! Mudança de hábitos, de consciências, de atitudes, de palavras. Mudança, precisa-se para ontem! Além da comida, cada Coração tenta dar sempre o seu melhor e o seu melhor, às vezes, é ser confrontado com situações impensáveis, é tentar manter a calma quando nos apercebemos que a burocracia, a discriminação, a falta de respeito e a insensatez ainda tomam conta de profissionais e organismos. Não estou a generalizar, é uma constatação que merece ser conhecida para que possam pensar como vivemos e como muitos nem se apercebem que há vida na rua, e quem nelas vive merece ser tratado com toda a dignidade. Se não podem ajudar, pelo menos não prejudiquem! Não prejudiquem com gestos, com a indiferença e mais… com palavras .
Parece que algumas pessoas, se calhar de tão “calejadas” com algumas situações, já nem têm capacidade de pensar, de olhar para o paciente e ser humano que tem à sua frente e fazer um diagnóstico que vai para além de medir o “visível”.
Chamem o que chamarem, é insensibilidade ao máximo, no extremo. Dar alta a um “amigo” da rua, dar-lhe a receita médica e um plano de dieta que deve ser cumprido à risca? Mas brincamos? Para quê a receita, se não têm dinheiro para comprar a medicação? Para quê o plano de dieta, se pura e simplesmente não têm comida? Isto não é brincar? Não é ser insensível? Então por favor , digam-me o que é?
Há, ok, efeitos da crise, podem pensar uns. Não, a crise não é resposta para a perda de valores. A crise não pode ser responsável por um grupo de pessoas a trabalharem numa unidade de saúde acharem tão giro, mas tão giro, um sem abrigo dar entrada nas urgências num estado menos bom, resolverem tirar fotografias, telemóveis em punho e bora lá captar a melhor posição. Mas o que é isto, é a crise? Sim, uma crise de educação, de valores, de respeito pelo próximo. Enfim… ensinem-me palavras bonitas porque há quem precise de acreditar que nem tudo, nem todos são iguais.
Felizmente ainda encontramos pessoas que têm cuidado ao lidar, ao falar e ao explicar. E quando isso não acontece, estamos lá nós, os voluntários (do Coração na Rua ou não, quem é voluntário, gosta do que faz e entrega-se de corpo e alma), para ouvir, para tentar explicar, para tentar acalmar a revolta, deitar a mão e evitar que algo de pior possa acontecer.
Ei… que dramatismo! Acreditem que não, ou será, cada qual tem o seu ponto de vista.
Um médico, para se fazer entender ou assustar quem está doente e é de outra nacionalidade, terá mesmo de desenhar um caixão numa folha de papel, olhar olhos nos olhos para dizer: “o seu fígado morreu?” Será necessário tanto? Bestial. Se já consciente do seu estado de saúde, aquela pessoa não quer comer o que as carrinhas levam para a rua, não quer sair do “buraco” em que se encontra, agora com o desenho do caixão vai lidar de forma diferente. Vais pois. Vai desistir mais rapidamente. Dito e feito. “Para quê tomar pastilhas se vou morrer, viu caixão,viu?”
Acham normal? Se acham, permitam que vos diga que algo em vós também morreu… os sentimentos. A hora é de mudança e todos temos de mudar, aprender, ajudar, ninguém pode ficar de fora ou achar que não é da sua competência.
Somos cidadãos e para o bem ou para o mal, ninguém pode negar que vivemos numa sociedade cada vez mais carente de tudo: de respostas, de soluções, de palavras. Temos amigos que enquanto trabalharam foram tão úteis, tão válidos e agora nem documentos têm e que lhes possibilite obter ajuda, regressar a casa para junto dos seus familiares porque deixaram de ter dinheiro e porque tudo lhes parece ser vedado. Enquanto esperam por uma resposta, morrem e por aqui ficam. Outros desistem de tudo, inclusivamente deles próprios, e não vivem, só respiram e esperam que o tempo passe.
De dia escondem-se de quem passa, a solidão não mata mas faz doer. Esperam que a noite chegue e os voluntários lhe levem um pouco do nada que têm e que até isso às vezes é retirado. Caixas de cartão, a pouca roupa que trazem vestida e que mesmo sendo um quase nada, incomoda tanto. Incomoda quem vive no prédio ao lado, incomoda as visitas que passam. É deitar para debaixo do tapete (que neste caso não existe, porque são pedras) o lixo como às vezes são apelidados. É desinfetar o local onde durante meses dormem, desinfetar para que ninguém sinta o cheiro e se sinta enojado, e tudo isto porque visitas importantes vão passar e esta realidade não deve ser vista. Mas esta é a realidade. Se não querem que assim seja, arranjem soluções. É hora de mudança! Quero acreditar que seja e que algo vai ser feito, porque somos todos iguais só que moramos em locais diferentes.
Para terminar, porque todos temos direito a viver e o dever de deixar viver, agradeço a todos os que na última crónica se uniram ao Diogo ( https://www.facebook.com/DiogoNaAlemanhaJa) que neste momento está na Alemanha e regressa dia 5 de setembro, dia marcado para um novo desafio. Desafio lançado e espero que abraçado pelos 17 mil amigos que estão com ele.
Há vidas para serem vividas, há sonhos para realizar, há muito para fazer e mudanças para acontecerem. Ajudem nessa mudança tão esperada e urgente e não deixem que os sentimentos morram!