O Logro
À mesa das negociações não se sentaram crianças com fome, idosos pobres, abandonados, gravemente doentes, pessoas sem abrigo, doentes mentais, jovens desempregados, pedintes, imigrantes abusados e explorados…, por isso, delas nada mais se poderia esperar que o seu total falhanço.
O termo “salvação” tem uma história milenar. O seu uso, no actual contexto político português, não me pareceu apropriado nem correcto porque a dignidade humana que lhe está na génese, como valor a defender-se incondicionalmente, não só esteve ausente nos discursos do Presidente da República e nas negociações ocorridas entre partidos políticos, como vi surgir, no seu lugar, resolver a falta de liquidez, evitar o pagamento de juros altíssimos e escapar a um segundo resgate. Por outro lado, ligar ao conceito de salvação o adjectivo “nacional”, quando à mesa das negociações apenas se sentaram representantes de três partidos políticos, também me pareceu desajustado e injusto porque se tratou de um encontro regional e exclusivista, tendo deixado de fora a pluralidade de outras narrativas.
E o “compromisso de salvação nacional”, que na óptica do Presidente da República era a melhor solução política para o país, fracassou. E fracassou, pelo que se ouviu dizer, por culpa de outros, e nunca pela falta de empenho de cada um, tomado individualmente. À mesa estava a visão de cada partido, ou mais precisamente a leitura daqueles que os representavam. Pensava-se que o compromisso pudesse ocorrer da cedência de cada um, ou da aproximação da visão de uns à visão de outros. Todos se esqueceram, ou simplesmente não sabiam, que a cooperação que leva a um compromisso exige, antes de mais, que ninguém se apresente e defenda a si mesmo como centro ou alternativa. O ser humano não é centro de nada, porque não é dono de si ou de coisa alguma, o que faz com que, sobre a realidade, não existam apenas meia dúzia de estados de consciência, mas sete biliões, se este é hoje o número actualizado dos que habitam o planeta terra. E ainda que legítimos, de nenhum destes se poderá alguma vez dizer que represente a realidade como ela é, até porque a realidade como ela é, se tal existe, permanece sempre uma grande incógnita.
Portugal vive refém dos números, e as pessoas têm-se visto obrigadas a resolver a dívida pública hipotecando as suas vidas ou perdendo dignidade. O “compromisso de salvação nacional” não era sobre como salvaguardar a dignidade dos que hoje vivem e apostam em Portugal, mas como pagar o que se deve e voltar a dever o razoável. E como egocêntricos balofos, os partidos desafiados a negociar as suas visões, não entenderam que à mesa deviam sobretudo saber ouvir milhares de outras narrativas sobre a realidade portuguesa. Cooperar não é ceder, nem chegar a consenso. A cooperação desaloja-nos de nós mesmos, para nos lançar na direcção de outras possibilidades. Cooperar é ousar dialogar descentrado, é perder-se por entre a pluralidade. A realidade portuguesa nunca será a soma do que pensam dez milhões e meio de residentes em Portugal, mas ela será mais ou menos genuína na medida em que um caminho de cooperação e compromisso resultar de olhares descentrados e inclusivos.
Entregue aos partidos políticos, Portugal procura resolver hoje o seu estado actual para abraçar, quanto antes, uma rota garante de sustentabilidade. Infelizmente, sem projecto político inclusivo, Portugal continua a pensar que o seu problema é meramente económico e financeiro. Esquece o ser humano, a sua condição, a sua dignidade e os mínimos de bem-estar que cada governo deve ser capaz de oferecer a cada cidadão, para que cada um possa continuar a pensar o mundo e a transformar-se com ele, com a natureza. E esquece também que a revitalização da economia, a criação de emprego e a dinamização de todas as outras áreas da vida humana se conseguem através de uma cooperante e incondicional defesa e promoção da dignidade humana. Se este for verdadeiramente o caminho, de regresso a um remodelado governo, tudo o resto acontecerá por acréscimo.