A Mariema tem 6 anos e vive muito longe de mim, com terras e águas e florestas e países a separarem-nos. Mora num país pequeno, que para a Mariema se resume a uma tabanca de palha, a um tapete de ráfia, a muito pó, muitos percursos de terra batida, árvores de troncos finos e grossos, animais que sorriem e outros que se zangam, cheiros de vários sabores, pedrinhas, mangas, mandioca, um mar lindo de imenso, que é tanto, e meninos e meninas descalços com cabelos desgrenhados. A mãe trabalha muito, vai para o campo quando ainda não fez dia e vem do campo quando já é noite. O pai tem uma cara imaginada pela Mariema.
Ela salta e pula e suja todos os dias mais um bocadinho o seu vestido azul bebé que está roto e que lhe dá pelos pés. Veio de outra menina, de um outro país que ela imagina ser grande mas não sabe o que lá mais dentro deve ter. Mariema queria vestir uma roupa igual a algumas meninas que vê passar, com um caderno debaixo do braço a caminho do saber. Quer ser como elas e aprender a dar as mãos às letras. Chegou à idade de ir para a escola mas ainda ninguém se importou. Gostava de vestir a farda para ser importante e ser importante para a Mariema é ser igual às outras meninas.
Já percebeu que existe um senhor mais velho com quem, daqui a uns tempos, não muitos, irá ficar. Disseram-lhe que era para tomar conta dela mas ouviu falar de casamento e só não sabe se as duas coisas querem dizer o mesmo. Não quer partir com esse senhor de barbas brancas com costas curvadas e um cajado para não se sabe onde, mas também não quer fugir antes que isso aconteça porque lhe custa muito deixar a sua tabanca, o seu bocado de terra que fica sempre enorme de cada vez que inventa histórias e passeia ao colo, a sua boneca Ary. A espreitar do seu vestido azul bebé, apenas se vê um molho de fios castanhos, restos de plantas, que fazem de conta ser os cabelos da Ary. O corpo, não existe, mas também não faz mal porque a Mariema sabe com são, tal e qual, as pernas, os braços e até a cara expressiva da sua boneca. Ah! E o vestido da Ary é cor-de-rosa e dá-lhe pelos joelhos .
Há pouco tempo e durante uns dias , Mariema teve uma forte dor de cabeça, diarreia, febre e ouvia vozes. Nessa altura viu uma luz tão clarinha que pensou que iria voar. Mas não, afinal, uns senhores grandes chegaram à sua tabanca e levaram-na. Fizeram-lhe uma magia qualquer que, no momento em que se preparava para levantar voo, o rosto da sua mãe apareceu-lhe à frente, muito nítido, a sorrir. Estas dores já as tinha sentido antes, duas vezes. Uma senhora velhinha, sábia, que mora na tabanca do lado, e que costuma fazer fogueiras e entoar cânticos estranhos enquanto chora e ri, contou-lhe um dia, que essas febres com dores de cabeça e de barriga, eram por culpa dos mosquitos e de outras coisas complicadas para gente crescida que agora não lhe podia explicar. Alguns meninos têm umas redes à volta do local onde dormem para se protegerem mas essas redes não chegam a todos. “E chegarão para todos?”, perguntou-se Mariema, para dentro de si.
Aliás, falar para dentro de si, é um dos seus passatempos preferidos e fica tão distraída que nem repara quando o sol e a lua trocam de lugar, sem amuarem. Conversa consigo sobre o seu pequeno mundo, muito colorido com as cores das machambas, das frutas, dos vegetais, das especiarias que a mãe usa nos cozinhados que faz à entrada da tabanca com pauzinhos e lume. Conversa sobre o seu maior segredo que não conta a ninguém, nem mesmo às suas amigas com quem vai apanhar sementes e com quem se perde, de propósito, para sentirem um medo pequenino dentro das barrigas. Perdem-se e voltam a encontrar-se, regressando a casa seguindo o rasto do caminho que desenharam com uma ripa, na terra, levantando a poeira que cobre os seus pés descalços. Já pensou várias vezes em partilhar o seu segredo com a Rimaly ou a Nônô mas prefere só contar, por enquanto, ( enquanto o tempo de criança durar) à sua amiga de colo, a Ary. Ela sabe todos os seus segredos, mesmo o gigante que existe desde que se lembra e lembra-se desde que passou a existir. Foi um dia muito especial, o dia em que o segredo gigante entrou na sua pequena vida. Mariema tem medo que, ao partilha-lo com as outras pessoas, grandes e pequenas, ele possa fugir-lhe e nunca mais o voltar a ver.
Tem medo de poucas coisas. Que se lembre com força, tem medo de quatro: que o segredo gigante fuja; que a noite escura traga algum desses homens feios que fazem coisas ainda mais feias, detestáveis às crianças e mulheres; tem medo de voltar a sentir aquela dor vivida durante o tal ritual que parece normal para todos à sua volta e que dizem existir para o bem de todas as meninas, mas cuja dor foi tão insuportável, que todos os dias é como se a sentisse outra vez, durante uns breves momentos. E tem ainda medo de nunca chegar a aprender a dançar com os números e as letras, e que por isso, quando for grande, não consiga curar todos os meninos e meninas das dores que os mosquitos provocam ( os mosquitos e as outras coisas estranhas de que falava a velhinha sábia …).
Guarda-o então só para si e espera não ser como aquelas pessoas que falam enquanto dormem, porque como partilha o mesmo tapete de ráfia com a mãe, ela poderá ouvir e contar à aldeia, ao país , ao mundo. E depois o que será Mariema sem o seu segredo gigante?
Só que o dia mais esperado de todos chegou finalmente, o dia em que, muito cedo, de manhãzinha, um grupo de homens e mulheres com ar simpático, se aproximou das tabancas ali à volta. Estavam à procura de crianças com idade de irem para a escola. Mariema ouviu a palavra poderosa, que a faz suspirar e saiu a correr do seu cantinho. Disse que sim e que já era sem tempo! Precisava com urgência de ir para a escola e ser igual a tantas outras meninas e meninos que falam línguas diferentes mas que já podem mostrar, sem receios, os seus segredos gigantes. Era o que Mariema mais queria.
Decide falar para dentro de si e para a sua boneca Ary, (porque só assim é mas fácil controlar o medo) :
“Deverei eu agora contar o meu segredo?”.
Seguiram-se segundos de silêncio muito prolongados, com o coração a bater a grande velocidade como a que circulava o vento que levantava as folhas do chão e que, normalmente não se fazia sentir assim.
O silêncio foi interrompido abruptamente, porque de forma atabalhoada, as palavras ganharam uma vida só delas, e livres, agruparam-se, saindo da boca da Mariema fazendo a seguinte revelação: “O meu segredo gigante chama-se Livro, tenho-o desde sempre, porque o sempre é muito e nunca deixei que ninguém o visse. Está escondido debaixo da terra e eu não sei o que lá diz mas sei que me faz acreditar que quando o conseguir ler, irei voar”.
Depois disto , passou-se uma vida inteira.
A Mariema estudou e estuda ainda, todos uns dias um bocadinho. Anda pelo mundo a tentar garantir que as crianças de todas as cores possam sentar-se nos bancos de escola de todos os géneros e feitios.
FIM
PS- Este conto é dedicado a quem dá e a quem recebe. A quem promove os Direitos Humanos e a igualdade de oportunidades.
A menina que foi abandonada pelos pais e que a portuguesa D.Nilza, como a tantas outras, ofereceu as condições para que pudesse estudar e comer e hoje é juíza no seu país.
A menina que sofreu violência infantil mas que uma Irmã religiosa lhe deu a possibilidade de acreditar em si e seguir o sonho de ser cabeleireira.
O menino que foi abandonado à beira do rio, mordido pelos bichos, formigas impiedosas, e que, encontrado pela enfermeira Laura, hoje é médico e de vez em quando lá vai tratar das imensas mazelas da enfermeira cuja missão é esquecer-se de si própria e acolher os meninos órfãos que em Tete, Moçambique, carregam o vírus da sida.
A menina que só aos 16 anos descobriu que podia, afinal, ter uma opinião e dizer o que pensava. Um grupo de técnicos de uma ONG ensinou-lhe que ela era importante e que o seu país, S. Tomé e Príncipe, precisava dela. Foi a correr para casa falar de assuntos que os pais não queriam ouvir, mas passado uns tempos, aceitaram e apoiaram a sua decisão de, voluntariamente, ensinar outras jovens a erguer a cabeça.
A mãe, que contra tudo e contra todos, no seu país , onde as meninas sofrem o casamento forçado a partir dos 6 anos, levantou corajosamente a voz e afirmou que com a sua filha isso não iria acontecer. Valeu-lhe muitas coisas más mas hoje a filha conseguiu seguir os estudos e trabalha na luta pelos Direitos Humanos.
A menina que, por ter visto o sofrimento de outras raparigas da sua família a viverem os rituais da mutilação genital feminina, não quis passar pelo mesmo destino e fugiu com medo, pelos campos, pelos países, passando fome e frio. Mas alguém teve a disponibilidade de olhar para os seus olhos profundos e para os seus traços do deserto e investiu nela, transformando-a numa top model mundial.
A menina que por gostar tanto de jogar futebol, sem condições familiares que ajudem e a morar num bairro social nos arredores de Lisboa, faz o pino para conseguir estudar e ter boas notas e hoje já é campeã nesta modalidade.
O que o Natal nos deveria trazer era uma noção diária do que é amar verdadeiramente o próximo, sem olhar para a sua nacionalidade, condição social, orientação sexual, idade ou género, crença ou religião. A discriminação, o preconceito e a inveja são, ao contrário do que muitos podem pensar e afirmar, fenómenos que se acentuam em momentos de crise. Que o alerta da luz amarela paire nas nossas cabeças, nos nossos olhos, nos nossos corações. Na verdade, temos sempre o poder da escolha, da liberdade, que nos permite colocar uma coroa, no nosso coração, se assim o entendermos.
E um livro poderá ser sempre o melhor amigo de cada Natal.