“Já não é tabu falar-se de velhice, assim como se perdeu o tino e a vergonha de se falar de tudo, como se, de repente, a opinião tivesse tomado o poder, e o poder da opinião passasse a ser uma declaração de guerra ao esquecimento e ao medo.
Mas infelizmente, o poder da opinião passou a ser o poder do adormecimento. Não há nenhum mecanismo da sociedade moderna que nos defenda deste alvoroço antigo, desta inquietação-inquietação, de que o instinto nos fala de mansinho sobre esta cerimónia silenciosa do passar dos dias. Passámos dos dias da mordaça para os tempos de uma democracia, onde todos participam… menos os mais velhos! Ou porque já trabalharam muito, ou porque merecem descansar, ou porque não servem para nada… ou ainda porque devem ser deixados morrer em paz.
No entanto, é neles que se reflecte tudo aquilo que verdadeiramente conquistámos. É nesta paisagem, em que falamos deles, dos mais velhos, como se fossem uma raça em extinção, que damos as mãos numa cerimónia silenciosa, na qual sistematicamente somos novos e cínicamente perplexos, a sugerir soluções inúteis, perante o engenhoso e piedoso invento, de que temos todos direito a uma morte digna.
Já não consigo passar por um jovem sem me perguntar, o que é que vai acontecer quando se lhe desfizer o feitiço da juventude?
Que poder lhe vai ser dado para, a pouco e pouco, se ir aproximando da idade dos medos, do tempo em que os filhos o vão considerar inútil, do momento em que a sociedade o vota ao descanso, para reiniciar com outro jovem, porventura o filho ou o neto dele, um novo processo de tortura, de exploração da força vital, de ensino da paixão da guerra, da concorrência desmedida, dos divórcios, da falta de amor, da não perda de tempo, e da tomada do trono a qualquer preço.
Há uma estranha e subtil esperança de que, um dia, não tenhamos que sofrer o que fizemos aos nossos velhos. É curioso como a sociedade votou parte da sua vitalidade e paixão, a pintar esta maravilhosa aventura a que chamamos vida, com cores doces e conciliadoras, criando apetecíveis planos de reforma, sistemas infalíveis de segurança social e mecanismos de harmonia geriartrica, como quem se sente culpado, e remotamente põe a questão do eterno retorno. Deus não existe, dirão os cépticos, mas… e se estamos enganados?
Meus amigos, todos os sistemas são falaciosos e falíveis, se não existir o amor entre os homens.
E isto não é uma utopia, é uma verdade que todos nós conhecemos, mas que raramente pomos em prática. Estamos tão ocupados a servir de motor a esta sociedade, que quando nos retirarmos para a nossa ilha predilecta, que na maior parte dos casos, não passa de um corpo demasiado maduro e exausto, já não temos forças para advertir os jovens.
A morte acaba por premiar uns, eternizando-os, e condenar os restantes outros… (a esmagadora maioria), matando-os!
É nesse sentido que a maior parte de nós é condenada ao esquecimento sem nenhuma razão.
Por que será que escolhemos carregar a vida com descuido e com ódio, em vez de o fazermos com amor e com carinho?
Só que… neste tema que hoje aqui nos traz, a coisa é muito mais complexa. Ensinaram-nos que nos deitaremos, um dia, na cama que fizermos ao longo da vida…e nós aceitámos isso como um dogma da vida.
Mas a verdade é que… no final, o amor que plantámos em vida será igual áquele que iremos colher na morte.
Disseram-nos que o que descontarmos, ser-nos-á devolvido em dobro na reforma. Deveria ser verdade, poque é justo que assim seja… mas não é! E o mais estranho é que não há ninguém que responsabilize alguém, pelo facto do nosso dinheiro ter sido sistematicamente mal governado e indevidamente gasto. É ridículo deixar que os governantes sejam penalizados apenas pelo voto. A falta de respeito por todos nós, mata mais do que a morte.
Aprendemos que o investimento mais seguro é aquele que se faz na família. Isso não é linear, porque nem sempre os nossos filhos comungam das dores da nossa velhice.
Então, o que é que está mal?
Será o trabalhar uma vida inteira à espera do descanso merecido?
Será o amar e sofrer por um causa, seja ela a família, um país, ou um ideal?
Será o sermos essa tal sociedade anónima que rege a apologia da esperança como um fantasma inquieto e febril, mostrando sempre o mesmo horizonte visual, o mesmo céu, onde apenas as nuvens variam, mas onde só elas vivem… inatingíveis?
Afeiçoámo-nos de tal forma ao ridículo da riqueza e da posse dos bens materiais, que remetemos a nossa velhice para uma boa reforma, um lar de terceira idade capaz, e um funeral de estadão, se possível com bandas militares e imagens na televisão, e permitimo-nos a que a nossa família conte os nossos tostões à espera dos sapatos do morto.
Entre o dia em que nos assumem como velhos, e o dia da partida, fica uma imensa solidão. Um empurra-empurra do avô para as diferentes casas dos filhos, umas visitas cada vez mais esporádicas aos lares, uns jogos de cartas no jardim do Príncipe Real, e um ténue olhar de amor, cada vez mais difuso daquele velho que nada mais tem para dar do que a sabedoria inerente ao seu estatuto de pessoa vivida e sábia, de quem não se quer ouvir a opinião, porque é quase sempre crua, dura, mordaz, verdadeira, simples e definitiva.
É por isso, que não se gosta dos velhos!
Para um velho nunca há dúvidas sobre quem vai tombar neste ou naquele confronto! Ás vezes com um sorriso desmonta discursos inteiros, naquele minuto em que, ao seu lado, irrequieto e distante, está o jovem neto, que remotamente se apercebe de quanta sabedoria trazem aqueles cabelos brancos.
E no entanto… são inseparáveis! Porquê?
Porque o velho tem a serenidade que só o amor contém, e a criança transborda de vida, daquela vida que ele tão bem conhece e que só deseja viver para proteger quem ama.
Não há avô que não conheça a saudade, que é a memória mais serena do amor.
O amor que une o avô e o neto é um rochedo cravado na terra, imune á acção destruidora da sociedade atormentada e do tempo. Não é preciso falarem. O silêncio dá-lhes força, força… que se chama respeito mútuo. No olhar de um, o bom senso, nos olhos do outro, o amigo de cabelo brancos que ele gostava tanto de ter na escola. É aqui que tudo começa, ou melhor, é aqui que tudo devia começar, porque é ali que as duas ingenuidades se tocam. O fim de uma vida traz o conhecimento dos caminhos. A coragem e a amizade, formam um grande laço e um exemplo para todos os outros poderem viver a paz que nunca conheceram.
A Verdade não se demonstra: afirma-se!
Ou não fosse ela o produto da nossa experiência. Deus existe, de facto. E existe em tudo, desde a água aos campos minados, na criança, no velho, nos fios de prata onde lhes reconhecemos o tempo, o desgaste… e a sabedoria. Um velho é um apóstolo da Vida.
Então por que razão temos tanto medo de ser velhos?
Conhecer é um acto supremo religioso. É importante que se torne visível o respeito que devemos ter por aqueles que percorreram os caminhos que ainda temos pela frente. O amor pela vida que um simples velho contém, é uma fonte de esperança renovada, que pode fazer a diferença entre este mundo dito moderno, e o mundo que poderíamos ter tido, e não temos, porque não quisemos, ou não conseguimos ter
Se me permitem um último pensamento, queria deixar-vos como tema de meditação a ideia de que o olhar a velhice como um desterro, é tão absurdo como imaginar uma paisagem sem côr. É por isso que a ciência não satisfaz o homem. A sua área é restricta.
Respeite-se o seu imenso desejo de pesquisa, mas ensine-se-lhe que o sonho a ultrapassa facilmente, na sua avidez de infinito, de sentimento, de maturidade, de preenchimento interior. Magoa ver a velhice como o descanso do guerreiro, ou como a antecâmara da morte.
Todos nós, mais dia, menos dia, teremos de atravessar essa ponte pênsil e pouco segura, com um andar lento… e doloroso, com o olhar velado pela pouca vontade de sorrir e de dizer coisas bonitas.
Porquê fazê-lo com amargura, se à dôr física não podemos fugir?
Porquê fazê-lo com tristeza, apenas porque a falta de força física nos torna pesados.
Porquê fazê-lo sós, se temos tanta gente que nos pode ajudar a caminhar com dignidade para o outro lado, para a outra margem…
Os fios de prata das nossas cabeças, são uma espécie de elegia ao nosso reencontro com a Mãe-natureza. De que serve baixar os olhos, se tudo à nossa volta não se cala?
A velhice é um mistério. Mas é dela que se alimentam os poetas… e as mais belas canções. Um simples fio de prata contém o maior dos enigmas da criação.
Como fugir a Deus, se a sua mão nos persegue, dentro e fora de nós, antes e depois de tudo? O que fizerem pelos velhos, estão a fazê-lo por todos nós.
O que fomos em novos, sê-lo-emos em velhos, e mesmo agora, o que deixarmos de fazer… e de dizer, faltará, por certo, no futuro.”
RUY DE CARVALHO