Se bem repararem, todos opinam, e creio que este, a par da adoção, é um dos assuntos que demonstram com mais clareza que o consenso sobre estas matérias é apenas aparente. Ciclicamente, a delinquência juvenil ocupa os meios de comunicação social por causa de declarações, muitas vezes em sentido oposto, motivadas por estudos, relatórios ou pela mera divulgação de dados, designadamente de segurança interna, que mostram diminuição ou aumento do número de factos ilícitos praticados por adolescentes ou jovens adultos.
Nessas ocasiões, invariavelmente, ouvimos declarações que advogam a diminuição da idade da imputabilidade, embora quase sempre se constate que as afirmações proferidas não buscam as causas dos fenómenos ou que, pelo menos, elas não são referidas quando se transcreve o seu teor, em extratos geralmente telegráficos.
Quando, há uma semana, conversava com o conselheiro Maia Costa, Ilustre magistrado que conheço e aprecio há mais de trinta anos (era eu delegada do procurador da República, em regime de estágio, no velho Tribunal da Boa-Hora e ele procurador coordenador nas hoje designadas varas criminais), ambos entendemos que as nossas experiências profissionais nos conduziam a idênticas conclusões sobre as histórias de vida da esmagadora maioria dos presos que povoam as nossas cadeias.
Na verdade, durante todo o meu percurso profissional, e mais acentuadamente quando exerci funções no Tribunal de Menores de Lisboa, constatei que as vidas dos jovens que iniciavam um percurso de criminalidade eram semelhantes: muita pobreza, condições habitacionais desfavoráveis, baixa escolaridade, famílias desestruturadas, muita violência familiar, infâncias sem os cuidados que gostamos de associar à ideia dessa etapa (como se pudéssemos construir um arquétipo onde coubessem aquelas qualidades que achamos indispensáveis ao desenvolvimento que consideramos normal) e, não raramente, graves perdas ou relações afetivas descontinuadas, o que, em conjunto, gera autoestima deficiente e ausência significativa de sentimentos de pertença, que os especialistas dizem ser determinante para a realização pessoal.
Insucesso e abandono escolar, violência interpessoal são palavras frequentes nos relatórios sociais pré-sentenciais, de tal forma que poderemos dizer que antevemos muito do seu conteúdo. Creio que, com frequência, o sistema formal de ensino acaba por excluir estes miúdos. Daí que esteja convencida de que, apesar de haver muitos professores que procuram compreender os seus dramas pessoais, não basta o voluntarismo para tornar a escola inclusiva.
São necessárias políticas que vão ao fundo dos problemas, motivando os docentes que não desistem deles, propondo programas mais apelativos e metodologias que os ajudem, reconhecendo-lhes direitos especiais por terem crescido em condições desfavoráveis, sem que isso signifique, obviamente, contemporizar com indisciplina; políticas que valorizem o conhecimento, mas que lhes deem também competências pessoais que lhes permitam respeitar o outro.
Em suma, a possibilidade de desenhar programas à medida de cada um, de acordo com as suas necessidades será uma medida facilitadora do sucesso. Só assim a escola conseguirá dar passos seguros para ser verdadeiramente inclusiva no que respeita aos casos mais complexos, evitando-se consequências muito sérias para a vida destes jovens.
O Instituto de Apoio à Criança, com o Projeto das Crianças de Rua tem apostado em metodologias desse tipo. Na verdade, quanto mais soubermos identificar as causas da delinquência, mais êxitos se alcançarão, e determinante será, afinal, a forma como conseguirmos relacionar-nos com os jovens, ganhando a sua confiança, o que só será possível com um acompanhamento personalizado e se acreditarmos mesmo que podem mudar e sair desse caminho.
Há cerca de dois meses, a propósito da visita do comissário europeu dos Direitos Humanos aos dois centros de Inclusão e Desenvolvimento Juvenil do IAC, abordei o tema aqui, procurando, sobretudo, enfatizar o direito da criança a ser ouvida, e dizer que estes jovens sentem muito essa necessidade e que costumam manifestar uma enorme revolta quando essa audição não se verifica, ou quando ela formalmente existiu, mas não foi tida em conta a sua opinião.
Na semana passada, esteve entre nós o presidente da Federação Europeia das Crianças de Rua e também ele visitou os nossos centros e conversou com diversos jovens que os frequentam em programas de treino de competências pessoais e sociais.
É muito interessante constatar que temos preocupações comuns e que a nossa metodologia é considerada uma boa prática por todos quantos conhecem os bons resultados que já alcançámos.
Os jovens marginais que iniciaram esse percurso podem deixá-lo, se forem alvo de programas adequados que saibam conjugar a assertividade e a disciplina com apoio, designadamente psicológico, que os ajude a refletir e a ter desejo de mudança. A delinquência quase sempre surge associada a condições de vida terríveis e a transgressão assume, muitas vezes, contornos de sobrevivência, num contexto adverso que não controlaram de forma livre. Estes jovens merecem uma oportunidade de esperança. Estou convicta de que não é diminuindo a idade da imputabilidade que teremos melhores resultados.
Pelo contrário, quanto mais tempo tivermos, durante a adolescência, para os ajudar a inverter esses percursos, mais ganhamos como comunidade.
Como disse, há muitos anos, numa palestra em Coimbra, “a inimputabilidade dos jovens é uma aquisição cultural histórica”, que se deve ao melhor conhecimento das fases de desenvolvimento do ser humano, e que, por isso, devemos saber preservar, respeitando os seus tempos e, sobretudo, as suas dificuldades, sempre procurando, simultaneamente, transmitir valores caros à vida em sociedade.
O que está errado, de certeza, é não fazermos nada. É vê-los a praticar atos ilícitos e permitir que se instale a sensação de impunidade que os impele a repetir.
A lei atual deixa nas mãos do ofendido a instauração do inquérito, permitindo, assim, que os jovens de 14 e 15 anos pratiquem furtos e ofensas corporais, por exemplo, sem que o Ministério Público possa iniciar o inquérito tutelar educativo.
Sendo estas as infrações mais frequentes que praticam, nem sequer uma admoestação lhes pode ser aplicada no momento oportuno, caso o ofendido não apresente queixa. Parece-me aconselhável rever esta norma, tanto mais que teve, decerto, um efeito não previsto: o de permitir que muitos destes jovens adolescentes internados em lares da segurança social fiquem afinal nos mesmíssimos lares onde estão acolhidos aqueles que foram abandonados, maltratados, abusados…
Quando foi publicado o relatório do conselho técnico-científico da Casa Pia de Lisboa, em 2005, tive esperança de que esta situação fosse tratada. Propôs-se, então, que fossem criados estabelecimentos diferenciados que respondessem a situações diferentes e mais complexas, com valências múltiplas, da responsabilidade conjunta da Justiça, Segurança Social, Saúde e Educação…
O relatório chamava-se
Um projeto de esperança…