A primeira vez que o vi, ó Nossa Senhora da azinheira, foi no cinema da 7.ª esquadra, em Luanda. O filme chamava-se Rocco e os Seus Irmãos, e Alain Delon, na pele de um pugilista, filho de família operária, era um James Dean sem queixinhas. Nesse cinema ao ar livre – e já Delon peregrinara, entretanto, das mãos (e porventura das pernas) de Visconti para as de Antonioni, coisas a que eu era miúdo demais para ligar pevide –, eis que volto a vê-lo em Le Samouraï, em português chamado com alguma propriedade O Ofício de Matar, que era o que no filme fazia: matar pessoas. À estarrecedora beleza de homem, que já estava em Rocco, juntava-se agora uma virilidade toda entretecida em silêncio e solidão. Mas, sobretudo, costurada com indesculpada e prodigiosa vontade de absoluto. No cinema, só Clint Eastwood é digno de beijar a fímbria deste manto. Com uma diferença, Clint é todo feito em pedra, enquanto Delon é tecido nessa carnal matéria humana de que são feitos os sonhos.
Falei de absoluto e vejam: já essa inquietação fizera Delon fugir de casa aos 14 anos, apanhado num porto francês a querer ir para a América. Aos 16, numa de “Angola é nossa”, foi voluntário para a tropa, batendo com os jovens costados na guerra da Indochina. Lá, vê num cinema Jean Gabin e decide: quer ser actor. Volta a Paris e o esplendor dos seus 20 anos de veterano de guerra trespassa o nascente feminismo: desse “deuxième sexe”, de que falava a Beauvoir, o corpo de Delon foi o promíscuo contentamento. As mulheres amaram-no de cima abaixo, Romy Schneider mais do que ninguém.
De Delon, “o mais cool dos actores” como disse Leonardo Di Caprio, pode dizer-se tudo, que foi rebelde, delinquente, talvez mafioso, mas tem de se dizer que amou Romy com incensurável nobreza. As cartas que ele lhe escreveu, a última a uma Romy já morta, são o testemunho da irrefreável ternura de um samurai. Eis o seu epitáfio: era actor e sabia escrever cartas de amor.
*Manuel S. Fonseca
“Ex-produtor de cinema, ex-cinéfilo (que agora já não vale a pena)”, nas palavras do próprio. Foi fundador da editora Guerra e Paz