A nova era dos laboratórios de cocaína. Os “narcos” deram outro passo em frente?

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A nova era dos laboratórios de cocaína. Os “narcos” deram outro passo em frente?

A descoberta, no início deste mês (dia 3), de mais um laboratório industrial para produzir cocaína em Portugal está a fazer soar os alarmes junto das autoridades que combatem o tráfico internacional de droga em território nacional. Apesar da satisfação por (mais) uma operação “bem-sucedida” – desta vez batizada de Pacoba (o fruto da bananeira) –, os elementos da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) da Polícia Judiciária estão conscientes que a multiplicação destas estruturas pelo País representa “o acentuar de uma mudança de estratégia” e de “uma melhoria dos métodos” utilizados pelas organizações criminosas para conseguirem importar a droga, proveniente da América do Sul, para a Europa, explica, à VISÃO, fonte da PJ. “É algo que pode vir a dificultar muito o nosso trabalho”, admite a mesma fonte.

Para se compreender o problema, é preciso viajar às raízes do negócio, nas zonas rurais da Colômbia, Bolívia e Peru, onde a folha de coca brota em quantidades enormes. Antes, os produtores de cocaína apostavam em montar, nestes países, os seus laboratórios clandestinos, nos quais, com recurso a químicos fortes, conseguem extrair, daquela planta, o máximo de pasta de coca (também chamada de pasta base), matéria em estado líquido, que, depois, vai ser transformada em cloridrato de cocaína, a versão em pó (popularmente conhecida), pronta a ser introduzida nos mercados consumidores.

Clandestino O grupo de sete homens montou laboratório num armazém em Campelos (Torres Vedras). Pelo menos uma tonelada de cocaína terá sido ali produzida

Agora, à Europa, chega (também) a pasta de coca; e o processo de transformação para pó faz-se em laboratórios montados deste lado do Atlântico. Porquê? A alteração no “modelo de negócio” dos cartéis não acontece por acaso. “Continua a chegar, em grandes quantidades, cocaína em pó, naturalmente. O que as organizações criminosas perceberam é que a pasta de coca não é detetável. Os cães não a conseguem farejar e os testes de campo (testes rápidos), utilizados pelas autoridades, nos portos [marítimos] e aeroportos, não são capazes de identificar a presença daquele estupefaciente”, confessa a fonte da PJ.

Assim, os narcotraficantes aumentam as possibilidades de “fintar” as autoridades portuguesas e europeias (focadas no cloridrato de cocaína), reduzindo os riscos de possíveis apreensões, minimizando, ao mesmo tempo, eventuais prejuízos por cargas perdidas, e beneficiando, ainda, do aumento da qualidade do produto produzido, graças a um mais fácil acesso aos “ingredientes” (químicos produzidos na China e na própria Europa), e também à qualidade das “cozinhas”, laboratórios mais sofisticados, e melhor localizados.

A exceção que se tornou regra

Corria o ano de 2012, quando uma megaoperação policial – designada de Nações Unidas pela Polícia Federal brasileira (que contou com a participação da norte-americana DEA [Drug Enforcement Administration] e das polícias de Portugal, Espanha, Colômbia e Uruguai) – permitiu apreender uma significativa quantidade de pasta de coca, que era transportada dentro de sacos de gelo, que serviam para manter frescos os carregamentos de peixe vindos da América Latina, que tinham a Galiza (Espanha) como destino final; o líquido, porém, não era água, mas o tal extrato da folha de coca. Aparentemente, o plano era infalível, mas a investigação conseguiu desvendar o esquema, o que levou à detenção, no Brasil, do barão da droga colombiano Alexander Pareja Garcia, fugitivo desde 2005.

Passou mais de uma década, e o “método” de Pareja Garcia parece ter chegado para ficar. É preciso know-how, evidentemente, mas mesmo pequenos grupos parecem mostrar capacidade de seguir esta receita. “Não é uma novidade, mas é, cada vez mais, uma aposta forte daqueles que se dedicam ao tráfico internacional de droga”, confirma, à VISÃO, Sylvie Figueiredo, investigadora em crime organizado e terrorismo.

A especialista considera que esta “é uma resposta” das organizações que atuam neste submundo, pois considera que o combate ao narcotráfico internacional em Portugal e no espaço europeu “está hoje mais robusto, mais afinado”. “Na prática, esta é a forma que os narcotraficantes encontraram para contornar as dificuldades com que se deparam, pelo facto de as autoridades nacionais e europeias terem consolidado a legislação, os planos de combate, a cooperação internacional, e ainda terem adotado um conjunto de medidas, em colaboração com os Estados Unidos da América, mas também com outros países da América Latina, para combater mais eficazmente o gigantesco tráfico de cocaína para a Europa”, afirma Sylvie Figueiredo.

“É algo que pode vir a dificultar o nosso trabalho”, admite fonte da PJ. Se a cocaína não chega a Portugal “cozinhada”, os cães não farejam e os testes não detetam

A quantidade de laboratórios de cocaína detetados já denunciava este retrato. Nos últimos anos, dezenas destas estruturas foram desmanteladas em países como Espanha, Países Baixos, Bélgica ou Alemanha, territórios tradicionalmente apontados como “portas de entrada” da cocaína na Europa. Portugal entra agora no lote.

Ainda em setembro deste ano, uma operação conjunta da Polícia Nacional espanhola, Polícia Judiciária e Polícia Nacional colombiana tinha permitido descobrir aquele que, ainda hoje, é considerado o maior laboratório clandestino de produção de cocaína alguma vez encontrado na Europa. A “fábrica” de droga, operava 24 horas por dia, funcionava na região de Pontevedra, na Galiza, a apenas uma hora da fronteira portuguesa.

A Operação Mourente permitiu desmantelar o grupo criminoso, e prender 18 pessoas (que continuam detidas), que conseguia produzir 200 quilos de cocaína diariamente. De acordo com a investigação, a principal matéria-prima para a produção do pó tinha chegado à Europa através do porto marítimo de Leixões, em Matosinhos – foram apreendidos 1300 quilos de pasta de coca.

Em novembro de 2023, a PJ também já tinha desmantelado um laboratório do género em Portugal, que operava na freguesia de Gondomar, no município de Guimarães. O laboratório, descrito, pela Polícia Judiciária, como tendo “dimensões consideráveis”, funcionava numa “vivenda”, situada num local “rural e isolado”. Na operação, foram detidos quatro indivíduos estrangeiros – que permanecem em preventiva –, e foram ainda apreendidas pasta de coca e cocaína “suficientes para cerca de 250 mil doses individuais”. A operação permitiu ainda encontrar “armas de fogo e munições, uma viatura e mais de €17 mil e moeda estrangeira”, comunicou a PJ.

Portugal alerta?

O laboratório detetado em Torres Vedras funcionava numa quinta abandonada, afastada das povoações vizinhas, na freguesia de Campelos. O espaço será propriedade de “amigos” do alegado líder do grupo, Ercílio Ribeiro (ver caixa), que aparentemente não sabiam o que lá se passava. Há uns anos, o espaço tinha sido alvo de buscas policiais, mas as autoridades, na altura, encontraram haxixe, e esqueceram o assunto. Desta vez, o caso foi mais grave: sete pessoas foram detidas, quatro portugueses, e três estrangeiros (dois colombianos e um marroquino), que a investigação acredita estarem ligados ao transporte e produção do produto encontrado; os estrangeiros, trabalhadores, foram detidos enquanto dormiam, no interior do laboratório.

A presença dos cidadãos colombianos, alegadamente responsáveis por “cozinhar” a cocaína, “comprova que as organizações criminosas estão a colocar os seus homens na Europa”, alerta Sylvie Figueiredo. A especialista em segurança, intelligence e investigação criminal insiste que este facto “pode mudar a Europa”, pois, agora, “temos elementos destes grupos com um pé deste lado [do Atlântico], capazes de encetar contactos, e de se fixarem nos países consumidores”.

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A VISÃO apurou, junto de fonte da investigação, que a pasta de coca encontrada no armazém de Campelos “estava misturada com café”. As autoridades acreditam que, daquele laboratório, equipado com prensas, cubas e sistemas de refrigeração, terá saído, pelo menos, uma tonelada de cocaína, que serviu o mercado interno, mas que também entrou no circuito internacional.

Em conferência de imprensa, Artur Vaz, diretor da UNCTE/PJ, descreveu a estrutura como o “maior laboratório encontrado até hoje em Portugal” e “um dos mais importantes da Europa”. A operação envolveu várias autoridades estrangeiras, como a Polícia Nacional de Espanha e a Polícia Nacional da Colômbia, e ainda a DEA e a Homeland Security dos Estados Unidos da América – a PJ apreendeu 460 quilos de cocaína processada e outros 32,5 quilos em processo de transformação.

A investigação aponta para ligações a cartéis internacionais, com ligações ao submundo do crime organizado do Brasil e da Colômbia.

Nos gabinetes da Gomes Freire (sede da PJ), chega-se à conclusão de que há uma nova montanha para escalar (e alta). “A Europa é o segundo mercado de cocaína mais rentável do mundo (apenas atrás da Austrália). O problema é que o mecanismo de combate ao narcotráfico continua todo montado a pensar no cloridrato de cocaína [pó]”, sublinha Sylvie Figueiredo. “Existe, neste momento, uma grande lacuna na deteção de pasta de coca [líquido]. Os mecanismos que funcionam para detetar o pó não servem para detetar o líquido”, resume a especialista.

Ercílio, camiões e cocaína

O empresário “importante” e “pacato” da Lourinhã é apontado pela PJ como o “dono” do laboratório. Ercílio esteve preso dois anos em França e viajou dezenas de vezes ao Brasil, desde 2017

A habitual pacatez de Reguengo Grande (Lourinhã) viu-se abalada, nos últimos dias, com a notícia da detenção de um dos mais ilustres filhos da terra: Ercílio Ribeiro, 56 anos, apontado como o “dono” do laboratório que servia para produzir cocaína, que a Polícia Judiciária desmantelou, no passado dia 3, numa quinta abandonada em Campelos (Torres Vedras). Localmente, Ercílio reúne apenas opiniões positivas, conhecido por ser um empresário “importante”, membro de uma família “trabalhadora e pacata”, que, desde 2017, construiu “um império dos camiões”, à frente de uma empresa de transporte de mercadorias, que devora alcatrão em Portugal e no estrangeiro. Aparentemente, os vizinhos desconheciam o que será uma vida dupla, ligada ao universo do narcotráfico. Até aqui, Ercílio não tinha tido problemas com a Justiça portuguesa, embora constasse dos radares das autoridades europeias desde 2021, quando um dos seus camiões foi intercetado em França, carregado com €500 mil em dinheiro vivo. O português não soube explicar a origem do dinheiro; e o silêncio valeu-lhe dois anos numa cadeia francesa, por branqueamento. A versão da família colocava-o “a tratar dos negócios” no estrangeiro; Ercílio tinha alargado a sua atividade, abrindo empresa no Brasil. Nos últimos sete anos, o suspeito fez dezenas de viagens para a América do Sul, a última no mês de setembro, quando passou quatro dias em São Paulo. Na terra, “ninguém estranhou” a longa ausência. Solto em 2023, Ercílio regressou a Portugal. O passado trouxe-o, porém, na bagagem (ainda sem saber). As autoridades francesas ativaram uma Decisão Europeia de Investigação (DEI) em seu nome, insistindo numa investigação ao homem, que passou a estar “controlado” pela PJ. A principal suspeita passava por “ligações ao narcotráfico”, naturalmente. Os crimes foram “rapidamente confirmados”, apurou a VISÃO. A investigação aponta para relações com organizações criminosas internacionais, como o Clã do Golfo (da Colômbia) e o PCC (do Brasil). Ercílio acompanha o inquérito em prisão preventiva.

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