O escritório de Michael Leon, professor emérito no Departamento de Neurobiologia e Comportamento da Universidade da Califórnia, em Irvine, é uma pequena sala de um antigo laboratório, com pouca decoração nas paredes além dos canos que sobraram de um lavatório. “Não há qualquer papel na sua secretária”, reparou o jornalista que ali esteve a entrevistá-lo para a última edição da UCI Magazine, a revista daquela universidade norte-americana.
“Gosto de simplicidade”, disse-lhe então o neurobiólogo, fazendo um paralelismo entre o seu local de trabalho espartano e um determinado modo de pensar: “Quando comecei a fazer investigação clínica, tornou-se claro que as boas soluções complicadas podem levar milhares de milhões de dólares e décadas para serem eficazes, por isso sinto-me atraído por respostas simples a questões complexas.”
Já no século XIV, o filósofo franciscano inglês Guilherme de Ockham defendia que, em igualdade de condições, a explicação mais simples é geralmente a mais provável. Além de seguir este princípio de economia de pensamento (também conhecido como Navalha de Ockham), Michael Leon foi aplicando o que ia aprendendo no laboratório aos problemas reais das pessoas. As mais de quatro décadas a estudar a ligação entre o nariz e o cérebro não têm parado de dar frutos.
O ultimo estudo que liderou, e cujas conclusões foram recentemente publicadas na revista científica Frontiers in Molecular Neuroscience, partiu de uma premissa simples: estando uma longa e diversificada lista de problemas de saúde ligados tanto à perda olfativa como ao aumento da inflamação, não haverá algo mais profundo nessas associações?
Prever o futuro
Bingo! Ao rastrearem metodicamente 139 doenças neurológicas, somáticas e congénitas/hereditárias, o neurobiólogo e a sua equipa descobriram uma via comum que liga esses dois fatores. Mais: concluíram que, muitas vezes, a perda do olfato surge antes de se sentirem os sintomas das doenças, o que indica que ela pode aumentar a vulnerabilidade e prever futuros declínios cognitivos e mesmo a mortalidade.
A boa notícia que vem à boleia da descoberta do papel fundamental da inflamação é a possibilidade de recorrer ao enriquecimento olfativo como “tratamento”. Este estudo veio provar que os aromas agradáveis podem melhorar a memória, tanto em adultos saudáveis como em adultos afetados por demência, possivelmente devido aos seus efeitos anti-inflamatórios.
Muitas vezes, a perda do olfato surge antes de se sentirem os sintomas das doenças, o que indica que ela pode prever futuros declínios cognitivos
Não é de hoje a noção de que a disfunção olfativa é um sinal precoce de vários problemas de saúde, não apenas neurológicos. No início dos anos 1990, os cientistas concluíram que a perda do olfato surge muito antes do que qualquer outro sintoma de Alzheimer e de esclerose múltipla. E, nas décadas seguintes, chegaram à mesma conclusão ao estudarem pessoas com esquizofrenia, perda cognitiva, Parkinson, depressão e doenças cardiovasculares.
Recentemente, o comum dos mortais aprendeu na pele que perder a capacidade de cheirar era sinal de que se encontrava, muito provavelmente, infetado com o vírus da Covid-19. O novo estudo vem agora dizer que a inflamação pode estar na origem da disfunção olfativa associada à infeção por SARS-CoV-2 – assim como dos outros 139 problemas de saúde analisados.
“Talvez o sistema olfativo [as estruturas do corpo, incluindo o nariz, que regulam o olfato] seja particularmente sensível à inflamação que o atinge, quer a partir de outras partes do cérebro, quer através da corrente sanguínea periférica”, escrevem os investigadores. Em alternativa, sugerem, a inflamação poderá ser desencadeada por agentes que entram pelo nariz, como a poluição do ar ou odores desagradáveis.
No caso específico da Covid-19, Michael Leon e a sua equipa põem a hipótese de o sistema olfativo ser particularmente sensível aos danos infligidos por outras fontes de inflamação (cérebro ou corpo) que surgem de várias doenças, por já estar a suportar níveis elevados de inflamação respiratória devido à exposição a agentes voláteis do ar.
Estudos anteriores concluíram que as infeções por Covid-19 que produzem perda do olfato podem promover a perda cognitiva que se observa no Alzheimer. Dado o número de sistemas fisiológicos que são habitualmente afetados na Covid-19, os autores desta nova investigação não acreditam que a perda do olfato tenha sido o único fator a aumentar o risco dessa doença, mas sugerem que ela possa ter contribuído para a degradação de regiões do cérebro essenciais para o funcionamento normal da memória.
Acesso à memória
Lembre-se que o sistema olfativo comunica diretamente com o sistema límbico, uma região do cérebro associada à memória. Os cheiros estão, assim, mais fortemente ligados à maneira como recordamos acontecimentos passados, comparando com outros sentidos como a visão ou o som.
“O sistema olfativo é o único sistema sensorial que tem um acesso direto, através de uma autoestrada, aos centros de memória do cérebro. Todos os outros sentidos têm de ir pelas ruas secundárias para lá chegar”, disse Michael Leon, à NBC News, há cerca de um ano, a propósito de um seu outro estudo em que descobriu que o enriquecimento olfativo pode melhorar a memória dos adultos mais velhos em 226 por cento.
Nesse estudo, publicado em julho do ano passado, também na Frontiers in Molecular Neuroscience, uma equipa de investigadores liderada pelo neurobiólogo expôs vinte pessoas (com mais de 60 anos e geralmente saudáveis) a seis meses de enriquecimento olfativo durante a noite. Todas melhoraram significativamente a sua capacidade de recordar listas de palavras, em comparação com um grupo de controlo.
Mesmo sabendo que os neurónios envolvidos no olfato têm acesso direto à tal “autoestrada” para regiões do cérebro relacionadas com a memória, os cientistas não conseguiram, então, explicar como é que os aromas noturnos tinham produzido aquele resultado impressionante. “Agora [com o novo estudo], sabe-se que os aromas agradáveis podem reduzir a inflamação e, assim, melhorar a saúde do cérebro”, congratula-se Michael Leon.
“Se perguntarmos às pessoas qual o sentido de que estariam mais dispostas a abdicar, seria o olfato”, costuma dizer o neurobiólogo. Mas, se souberem a sua perda tem sido associada a tantas doenças e ao declínio cognitivo, talvez mudem de ideias. Simples, não?
Dar pelo sinal de alarme
O olfato não é sempre afetado da mesma maneira. Encontre as diferenças
Parosmia
Quando o cérebro não identifica o odor corretamente. A pessoa pode sentir um cheiro (e consequentemente paladar…) a comida estragada quando perante um alimento em perfeitas condições
Fantosmia
Também conhecido como alucinação olfativa. Esse “odor fantasma” é quase sempre desagradável, como se a pessoa estivesse perante algo podre ou queimado
Anosmia
Quando há a perda total do olfato. Além da incapacidade se uma pessoa sentir odores, também prejudica o seu paladar
Hiposmia
Há uma diminuição da capacidade olfativa. A pessoa sente o cheiro, mas precisa de uma concentração maior das partículas que provocam esse odor
Hiperosmia
É o aumento da capacidade total do olfato. Basta uma pequena concentração de partículas para que a pessoa sinta o odor de uma maneira excessiva