A carta aberta, intitulada Contra o racismo e a xenofobia, recusamos o silêncio, surgiu como resposta à manifestação “Contra a Islamização da Europa”, marcada para 3 de fevereiro, no eixo Avenida Almirante Reis, Mouraria e Martim Moniz, em Lisboa, precisamente onde moram e trabalham muitos imigrantes, chegados à capital sobretudo vindos de países do sul da Ásia, Bangladesh, Nepal, Índia e Paquistão.
A mensagem da missiva, uma iniciativa da Kilombo – Plataforma Anti-Racista, a que se juntaram outros coletivos, como Rede 8 de Março, SOS Racismo, Djass – Associação de Afrodescendentes, associação Renovar a Mouraria, FAR – Frente Anti-Racista, Civitas de Braga, entre outras, é simples. Exigem que todos os responsáveis políticos e institucionais façam cumprir o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, Princípio da Igualdade, no qual se lê: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
Nesse manifesto pedem também que sejam acionados “os mecanismos processuais para que se aplique o artigo 240º do Código Penal, relativo à discriminação e incitamento ao ódio e à violência”, crime punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.
O alerta tem como destinatários os principais representantes do Estado português (Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da Assembleia da República, Augusto dos Santos Silva, primeiro-ministro, António Costa, presidente do Tribunal Constitucional, José João Abrantes, procuradora-geral da república, Lucília Gago) e outros políticos e responsáveis institucionais (ministros da Administração Interna, José Luís Carneiro e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, secretária de estado da Igualdade e Migrações, Isabel Almeida Rodrigues, presidente da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, José Reis e presidente do Observatório do Racismo e Xenofobia, Teresa Pizarro Beleza).
Em causa poderá estar a “segurança de todas as pessoas imigrantes em Portugal”, daí a urgência da iniciativa que visa “combater o racismo, a xenofobia, a hostilidade religiosa e o crescimento do discurso de ódio” provenientes de grupos de extrema-direita.
“Vamos esperar que seja aberto um inquérito para se apurar se está ou não em causa a violação de princípios legais do artigo 240º do Código Penal; se estão em causa indícios da prática de crimes com a convocatória para esta manifestação”, explica Anizabela Amaral, jurista e ativista anti-racismo da Kilombo. “Quando a situação é considerada grave e urgente, a abertura de um inquérito criminal não tem de demorar muito tempo e, provavelmente, até já existe esse inquérito, porque as notícias sobre o evento são públicas há muito tempo.”
Anizabela Amaral enumera uma série de preparativos que os grupos de extrema-direita têm estado a ultimar para o dia 3. “Está prevista a utilização de tochas e archotes. É público, não escondem. Estão a fazer uma angariação de fundos para contratarem uma empresa de filmagem com drone. Querem fazer um espetáculo visual, criando um efeito espetacular ao início da noite. Ao divulgarem essas imagens, podem conseguir angariar mais financiadores para o que consideram ser uma causa. Esta semana, na terça de manhã, colaram cartazes na rua, diante da Assembleia da República, com mensagens islamofóbicas, contra a liberdade religiosa.”
Também o Bloco de Esquerda, partido coordenado por Mariana Mortágua, apela à intervenção do Ministério da Administração Interna, da PSP e da Câmara Municipal de Lisboa para travar a manifestação que descrevem como “um ato de ódio e intimidação sobre as pessoas que residem e trabalham nesta zona, nomeadamente sobre comerciantes e as comunidades imigrantes.”
A carta aberta começa logo por elencar uma série de casos de violência, exemplos de como “as ruas de Portugal são cada vez menos seguras para as pessoas imigrantes”.
Violência gratuita
Há um ano, em Olhão, no Algarve, 15 imigrantes de origem asiática sofreram uma “agressão bárbara”, nas palavras do ministro da Administração Interna, durante um mês por parte de jovens portugueses. Deslocando-se ao local, o Presidente da República manifestou “repúdio indignado” por agressões “xenófobas e intolerância inaceitáveis”, em particular a um imigrante espancado na rua.
Em Lisboa, no bairro da Mouraria, em fevereiro de 2023, morreram duas pessoas (um jovem de 14 anos e um homem de 40), vítimas de um incêndio numa casa com três quartos e onde dormiam cerca de 15 pessoas, todas de origem asiática.
Em novembro passado, Gurpreet Singh, de nacionalidade indiana, foi morto com um tiro de caçadeira no peito, na casa onde morava nas Praias do Sado, em Setúbal com mais cinco imigrantes. A Polícia Judiciária entretanto deteve dois irmãos, de 22 e 29 anos, pelo homicídio do jovem de 25 anos, que alegadamente terá terá ofendido a mãe dos suspeitos.
Recuando a 2021, o texto lembra “os crimes praticados contra imigrantes” por parte das forças de segurança, “levando sete militares da GNR a serem acusados de um total de 33 crimes relacionados com maus-tratos a imigrantes em Odemira”, no litoral alentejano.
“Está tudo no bom caminho para que a extrema-direita em Portugal faça uma manifestação, à vista de toda a gente, contra pessoas que estão apenas a trabalhar e a viver e que escolheram o nosso país para tentarem melhorar as suas condições de vida”, sublinha Anizabela Amaral.
Em novembro passado foram apresentados os resultados do projeto de estudo Mapping out: Portugal on the european anti-immigrant movements map (Mapeamento: Portugal no mapa dos movimentos anti-imigração europeus), a cargo de uma equipa do Centro de Investigação e Estudos em Sociologia do ISCTE (CIES-ISCTE) e coordenado pela socióloga brasileira Thaís França, doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra.
Os movimentos anti-imigração estão presentes em Portugal mas de forma mais moderada do que na Alemanha, Itália ou Suécia, concluiu o estudo realizado nos últimos dois anos, integrando análises semelhantes feitas na Noruega, Itália, Alemanha, França e Áustria.
A socióloga sublinha no estudo que os grupos anti-imigração existentes em Portugal comunicam sobretudo através de redes sociais, como o Telegram, por exemplo. Escolhem as mais restritas para comunicar, sobretudo com a proteção das mensagens encriptadas. “Fui capaz de identificar esses grupos e entender que mesmo que não tenham tanta força como noutros contextos, eles estão a operar”, alertou a especialista numa entrevista à rádio Antena1.