O professor de Direito Penal e advogado Germano Marques da Silva considera que, atualmente, o Ministério Público português é um dos poderes do Estado sem qualquer tipo de controle. “É o único que se equipara às crianças e aos doidos, os inimputáveis”, considerou, durante um pequena conferência na sociedade de advogados Raposo Subtil e Associados (ver vídeo), subordinada ao tema “O princípio da separação de poderes”.
No início da sessão, organizada na sequência da “Operação Influencer”, que levou à queda do atual governo, Germano Marques da Silva – que, recorde-se, representou o antigo ministro da Defesa Azeredo Lopes, no processo do furto de armas de Tancos – começou por dizer que a chamada “crise da Justiça” não decorre das leis, mas “resulta dos homens”, porque são estes que “as aplicam”. Para o professor de Direito Penal, o problema com as algumas das investigações criminais passa pelo método: “O Ministério Público formula uma hipótese. E é esta que vai seguir. Quando se diz que o MP investiga a favor ou contra, isto é apenas um princípio, na prática não é assim”, declarou, perante os presentes no debate, moderado pelo advogado Miguel Matias.
Numa breve análise aos modelos europeus, Germano Marques da Silva considerou que Portugal tem o “Ministério Público mais autónomo da Europa”. “Não dependem de ninguém”, acrescentou, explicando que, na sua opinião, “se não houver hierarquia forte”, há, de facto uma falta de controle. “Com os juízes, ainda há os recursos”, disse. “Há países em que não é assim. Esta força do MP (em Portugal) que não presta contas a ninguém, é o maior poder que temos em termos europeus. Nem no sistema italiano isto existe”, referiu o também advogado.
Para Germano Marques da Silva, um dos problemas da separação de poderes tem a ver com a “judicialização da política”. “Em vários processos, o MP pretende formular juízos políticos. Acha que uma auto-estrada não é necessária”. Isto, continuou, “é a subversão da separação de poderes”. “O Ministério Público pode criticar a legalidade dos atos, mas não pode controlar a oportunidade”, sublinhou.
Na sua intervenção inicial, o advogado referiu também que a autonomia de cada magistrado do Ministério Público acabou por ser uma conquista do sindicado, que foi “reivindicando, reivindicando” e, atualmente, “o Procurador-geral é um burocrata, a tal rainha de Inglaterra”, como descreveu o antigo PGR, Pinto Monteiro. “Só pode dar instruções gerais e abstratas, mas estas já estão na lei”, explicou.
José António Barreiros, o “arrependido”
Em vez da separação de poderes do Estado (executivo, legislativo e judicial), o advogado José António Barreiros optou por centrar a sua comunicação na separação de poderes dentro do processo penal, concluindo, em síntese, que a atual fase de instrução até pode ser mais penalizadora para o arguido do que o beneficiar. “Quando o processo transita da instrução para julgamento, vai ser reexaminado por outro juiz que já não verá o que foi dito pelo Ministério Público, mas sim por um colega”.
E, durante a fase de instrução, o advogado referiu que se encontram três tipos de juízes: o interventivo, “procurando mostrar a insuficiência da acusação”, o neutro, e o que se milita a “ser um notário do Ministério Público”. Para José António Barreiros, o problema está na forma como os tribunais superiores têm decidido sobre como deve decorrer a fase de instrução (jurisprudência). “Não há leis que resistam às pessoas”.
E, por falar em jurisprudência, José António Barreiros aproveitou para referir o clássico exemplo da normal do 276 do Código do Processo Penal, a qual estabelece “prazos máximos do inquérito”, isto é, da fase de investigação. “Na comissão que elaborou o Código (1986), lembrei que, em democracia, estávamos a aprovar um Código do Processo Penal com prazos superiores aos da ditadura”, começou por referir. “Mas lá me explicaram que a criminalidade organizada necessitava de tempo para ser investigada”.
Para que houvesse um limite, recordou o advogado, “o artigo 276 tem na epígrafe ‘prazos máximos’ e no número 1 ‘o Ministério Público encerra o inquérito dos prazos máximos'”. Ou seja, sublinhou, a lei refere “por duas vezes” a expressão “prazos máximos”. “Confiou-se que bastava o enunciado para que o corpo judiciário entendesse que era um limite máximo”, explicou.
Contudo, questionou retoricamente o advogado, “o que é que a jurisprudência interpretou?”: “Como não se previu nenhuma sanção para o caso de o Ministério Público violar os prazos, estes eram meramente indicativos e o inquérito pode durar até à prescrição do crime”, criticou.
Contas feitas, o Código do Processo Penal de 1929, que atravessou o regime de Salazar, até dava mais garantias de defesa ao arguido: “No velho código, passado o prazo da instrução preparatória, a instrução contraditória abria-se automaticamente. O procurador estava a investigar e a olhar para o calendário. Cria-se, por isso, um mecanismos de aceleração”, explicou. Recordando algumas das críticas que fez, em devido tempo, ao código da ditadura, José António Barreiros penitenciou-se com ironia: “Perante coisas que vou vivendo, arrependo-me. Numa certa medida, sou um arrependido”.