Os últimos dois meses não têm sido fáceis. Andei três anos com um penso na cara que tapava as minhas imperfeições, mas, a partir do momento em que ele deixou de ser necessário, fiquei exposta e as pessoas tornaram-se mais intrusivas. Questionam, gozam.
Quando me abordam, explico que tenho um osteossarcoma – um tumor maligno que atinge os ossos – porque quero que as pessoas saibam que este tipo de cancro existe. Só ainda não aprendi a lidar com o apontar, os risos.
Há um mês, estava a caminhar com uma amiga num passadiço na Póvoa de Varzim quando me cruzei com um grupo de miúdos e uma rapariga instigou os outros a olharem para trás. Começou a rir-se e às cotoveladas até se virarem todos, e um deles fez o gesto de vomitar. A minha amiga só me dizia “Não ligues” e eu “Sim, sim”, mas a caminho do Porto, no metro, desatei a chorar e percebi que estava magoada.
Quando cheguei a casa, gravei um vídeo no Instagram a contar o que se passara e a pedir às mães para educarem os filhos. Arrependi-me porque as pessoas não lidam bem com a vulnerabilidade, mas isto tem que ver com o trabalho que ando a fazer de me mostrar mais como sou. Antes do diagnóstico do cancro, fiz uma tatuagem com a frase “Além do que se vê”. Mal eu sabia que ela ia fazer tanto sentido.
Recebi comentários desagradáveis e também muito amor. Uma mãe mandou-me um vídeo com o filho, a dizer-lhe “Não sejas aquele tipo de pessoa”, uma professora convidou-me a ir à sua escola falar sobre bullying e percebi que isto é abrangente. Escreveram-me pessoas que andam de cadeira de rodas, que sofrem de racismo…
Este cancro foi um desafio porque mexeu com a minha autoestima. Já estive bem pior e passei pelo fim de uma relação longa, mas não desisto. Quando fui diagnosticada com o cancro, pensava: “Nem que haja apenas 1% de hipóteses de ficar bem, esse 1% sou eu.” Hoje, sei onde quero chegar: quero sentir-me bem ao olhar para o espelho, mesmo com cicatrizes.
Quando ouvi “osteossarcoma”, fui para a internet. Os meus amigos e a minha família não queriam, porque já tinham lido que as pessoas morriam quase todas, mas eu só queria saber das vivas
Fui diagnosticada em maio de 2020, em plena pandemia. Fui a três dentistas e todos diziam que era um abcesso, mas não passava com antibióticos. Até que uma médica que estagiara no IPO enviou uma biópsia para lá. Quando ouvi “osteossarcoma”, fui para a internet. Os meus amigos e a minha família não queriam, porque já tinham lido que as pessoas morriam quase todas, mas eu só queria saber das vivas.
Foi assim que encontrei uma australiana, a Jennifer, e entrei em contacto com ela, e depois uma modelo canadiana, a Elizabeta, e uma italiana, a Sara. Nos fóruns sobre sarcomas, ia direta ao que me interessava: “Conhecem alguém com um osteossarcoma?” Queria saber que abordagem tinham feito – quimioterapia, radioterapia? – porque no hospital só me diziam: “É grave.”
Como o tumor já tinha crescido substancialmente, fui operada de um dia para o outro no IPO. Avisaram-me: “Vai ficar sem falar e sem andar, porque vamos retirar osso da perna esquerda para a maxila.” Os enfermeiros não queriam que me visse ao espelho, mas comecei a tirar todos os dias uma fotografia às 7h da manhã, para ver a evolução. Foi assim que percebi que desinchei em menos de um ano, quando diziam que ia ser em dois.
Depois dessa cirurgia, optei pela quimioterapia, a mais forte, e, mesmo assim, é um jogo da sorte. Nessa altura, tornei-me vegetariana e fui tão restritiva que fiquei muito fraca. Estava três dias a receber oito horas de drogas, ia para casa, mas não aguentava e era internada. Estive nove meses longe da família, por causa da Covid-19, e o meu companheiro tinha de fazer tudo. Sempre fui cuidadora, foi complicado ser cuidada.
Antes do último ciclo de quimioterapia (foram quatro, com descansos de 21 dias), falei com a minha médica oncologista e pedi-lhe para reduzir a dose. Acredito que não estaria aqui se não o tivesse feito. Na altura, até pensar me doía. Não conseguia dormir e entrei em depressão porque senti que ia partir.
“Um acordar para a vida”
Um dia, enviei ao meu irmão uma fotografia minha, careca, e ele fez-me rir: “Continuas feia.” Não queria morrer no hospital, sem voltar a ver os meus. Estava extremamente cansada, mas tenho qualquer coisa aqui dentro que não me deixa desistir. Uma ânsia de viver?
Acabei o tratamento em dezembro e em março de 2021 já fazia caminhadas de oito quilómetros. Fez-me muito bem sair de casa, porque gosto de ver gente, mas continuava com queixas e andei mais de um ano a dizer ao meu médico que sentia o osso na boca.
Foi, então, que fiz uma cirurgia para retirar esse osso e fiquei com a cara afundada. Tinha o lábio colado ao nariz e a dor interna de não me reconhecer.
Em janeiro de 2022, fui ao programa do [Manuel Luís] Goucha e ele ofereceu-me os implantes, mas disseram-me que primeiro teria de fazer uma plástica para ganhar espaço para os dentes. Já vou em sete cirurgias desde junho do ano passado. Andei um mês e meio com a boca cosida para o lábio ganhar irrigação, comia por uma palhinha, de lado. Agora, estou entre cirurgias. Fiz uma há duas semanas, para poder colocar os implantes, e faltam-me mais três. Estou em construção, literalmente, mas não me queixo.
Este cancro foi um acordar para a vida porque já não estava feliz há muito tempo. Era responsável por duas lojas de luxo, gosto de moda, mas sentia-me limitada, anestesiada, e triste com a morte da minha avó. Alguém disse que “o cancro é a tristeza das células”. O que guardamos aqui dentro [bate no peito] mata-nos.
Existe uma Luciana antes e depois do cancro. Quero contar a minha história em livro, mas, mais do que a viagem do cancro, vou escrever sobre o caminho do amor-próprio. Dou palestras sobre isso mesmo. Ganhei a força de me mostrar. Foi preciso ficar feia para falar.
Adoro viver, mas o que me aconteceu limitou-me muito. Ainda não sou a Luciana que saía para dançar. Estou no caminho do amor-próprio, que é um trabalho diário. Há dor e também há amor.
Encontro coisas boas em quase tudo, até na pandemia. A máscara deu-me tempo, sem ninguém questionar. Sentia-me normal. Há dias em que ainda uso, quando me sinto mais vulnerável. Não é para me proteger da Covid, é para me proteger das pessoas.
Depoimento recolhido por Rosa Ruela