De um momento para o outro, os sentidos pregam partidas: os objetos, as mãos ou outras partes do corpo podem parecer maiores ou menores do que realmente são. O mesmo para as alterações da cor, do movimento e da distância percebida, que confundem a mente e geram perplexidade. Era assim que Alice se sentia no País das Maravilhas, após dar por si num mundo estranho, quando foi atrás de um coelho com um relógio. Mais tarde, percebeu que tinha adormecido à sombra de uma árvore e que a sua aventura tinha sido apenas um sonho.
No mundo real, este tipo de experiência, marcada por episódios deste tipo , por vezes acompanhados de desorientação no espaço e no tempo, existe, e tende a desaparecer sem deixar marcas, momentos depois.
Trata-se de uma síndrome rara, descrita pela primeira vez no início dos anos 1950, pelo neurologista americano Caro Lippman e, três anos mais tarde, estudada pelo psiquiatra inglês John Todd. Ao constatar que alguns dos seus pacientes mais jovens, que sofriam de enxaqueca, se queixavam de ver objetos e partes do corpo distorcidas (metamorfopsia), colocou a hipótese de tais sintomas serem uma variante rara da doença. E cunhou-os com o título do famoso livro de Lewis Carroll, publicado em 1865, em homenagem à personagem que continua a fascinar pequenos e crescidos, também no cinema.
A causa de tão desconcertante experiência ainda não é inteiramente conhecida, mas sabe-se que a síndrome (SAPM, ou AIWS, em inglês) é rara, tende a manifestar-se durante a primeira infância e na adolescência e nada tem a ver com problemas oculares nem psicológicos e não consta na Classificação das Doenças Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria.
Os exames neurológicos com recurso a imagiologia de que hoje dispomos fizeram a diferença na compreensão deste fenómeno, tendo-se descoberto que parecem estar ligados a alterações no funcionamento cerebral que acompanha quadros de enxaqueca, de epilepsia e infeções virais, muito comuns nas crianças.
Os sintomas da SAPM, que incluem vários subtipos de distorção da perceção visual, do corpo e da realidade e perceção alterada da passagem do tempo (também designado por “sentimento acelerado”), podem surgir ainda em adultos e constituem um fator de ansiedade, pois além do desconforto que causam, tendem a ser atribuídos – na maior parte das vezes, por desconhecimento – a patologia mental.
É estranho, mas a Ciência explica
Esta espécie de ‘trip’, cujos efeitos se assemelham aos induzidos por drogas psicadélicas ou envolve sintomas típicos de estados de exaustão ou de stresse intenso, tem merecido uma atenção crescente na comunidade científica.
Num estudo publicado há dois anos, na revista médica Cephalalgia, da Sociedade Internacional de Dor de Cabeça, numa amostra de 210 pacientes adultos que foram acompanhados durante ano e meio, verificou-se que 19% deles apresentaram estas alterações, sobretudo quando tinham crises de enxaqueca com aura.
Outro estudo, divulgado na mesma altura, no Journal of NeuroVirology, estabeleceu uma associação entre infeções do sistema nervoso central provocadas por vírus (como o Influenza e o Epstein-Barr, na origem da encefalite) e bactérias (Borrelia, Streptococcus, entre outros) e distorções da forma, tamanho, distância, movimento e cor, além de estados dissociativos e alucinações auditivas.
Com pouco mais de duas centenas de casos registados em todo o mundo, a SAPM tem vindo a merecer a atenção de médicos e investigadores e pode durar entre alguns minutos e meia hora.
Num artigo da BBC publicado em março, o professor de psicopatologia clínica Jan Dirk Blom, da Universidade de Leiden, na Holanda, sublinhou ainda que a predisposição para estas crises passageiras pode estar ligada a fatores genéticos, embora não haja, por enquanto, uma confirmação empírica quanto a isso.
No mesmo artigo, refere-se que os mecanismos envolvidos na síndrome ocorrem na junção temporo-parietal-occipital do cérebro, onde as informações sensoriais (visão e espaço) se combinam com sinais sobre o toque, a posição corporal e a dor.
Quando existem lesões neurológicas ou inchaço neste ponto de confluência, isso pode desencadear alterações no processamento dos estímulos sensoriais, que se traduzem na distorção do sentido da realidade.
A sensação de estranheza e de irrealidade são um tema comum na literatura, na pintura, na psicanálise e na sétima arte (recordem-se os filmes de Hitchcock ou o protagonista do filme A Origem, de Christopher Nolan, em que o ator Leonardo DiCaprio se vale de um pião para saber se está a sonhar ou acordado). A Ciência, que procura descodificar – e desmistificar – fenómenos que tanto nos inquietam como fascinam, apresenta-nos dados que nos podem tranquilizar.
Um artigo divulgado em 2018 no magazine científico independente Neuroscience News, avançou uma explicação para os mecanismos da SAPM: ocorrência de variações da atividade neuronal na camada externa do cérebro, por meio de ondas de excitação aceleradas (no córtex visual ou somatossensorial) seguidas de uma depressão (no lobo parietal), trocando as voltas aos sentidos.
A aura, que precede a enxaqueca e até pode surgir isoladamente, com uma duração que vai de cinco minutos a duas horas, é um bom exemplo disso. Além de ser possível replicar os bizarros efeitos experimentados por meio da estimulação elétrica do córtex parietal posterior e do lobo parietal, também se podem reduzir esses estados por via da estimulação magnética transcraniana.
Portugueses na vanguarda da investigação
A SAPM também já foi estudada em Portugal, no Centro de Desenvolvimento da Criança, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) e resultou na publicação de um artigo, em abril, na revista SVOA Neurology.
Durante a pandemia, a equipa coordenada pelo neurologista pediátrico Filipe Palavra estudou as manifestações neurológicas associadas ao SARS-CoV-2 em três crianças com idades entre os seis e os 11 anos, sem historial pessoal e familiar de enxaqueca ou epilepsia, observadas em contexto clínico devido a alterações visuais (ver objetos maiores ou menores do que são e ilusão de distanciamento ou proximidade dos mesmos).
A Síndrome da Alice no País das Maravilhas é uma situação rara e passageira que envolve uma disfunção temporária do córtex associativo sensorial e visual, em casos de infeções virais, mas também na enxaqueca e na epilepsia
Em dois dos casos, os sintomas surgiram antes da infeção viral e no terceiro, apareceram uma semana depois de terem Covid-19. As crises, com alguns minutos de duração, desapareceram espontaneamente dias depois. O estudo permitiu concluir, nestes casos, que a SAPM foi o único gatilho.
“Trata-se de uma situação rara, mas que acontece mais vezes do que aquelas em que é reportada”, afirma Filipe Palavra. “Pensamos que de uma disfunção transitória do córtex associativo sensorial e visual, explicada pelas alterações vasomotoras que acontecem na aura da enxaqueca, na epilepsia e em algumas infeções virais.”
O especialista adianta ainda que, nos casos estudados, a inflamação induzida no sistema nervoso central pode ter estado na origem destas alterações orgânicas e temporárias. O facto de os sintomas serem mais comuns em crianças deve-se ao facto de ser na infância que as infeções virais são muito comuns e o médico dá o exemplo do vírus Epstein-Barr, agente causador da mononucleose infecciosa, “a clássica doença do beijinho, por ser transmitida pelas partículas da saliva”.
O clínico destaca a importância do diagnóstico e a necessidade de não desacreditar as queixas de alterações bizarras da visão (mãos que esticam e encolhem, por exemplo, tal como foram desenhadas pelas crianças do estudo, que constam no artigo) e “fazer as perguntas certas, sob pena de passar ao lado do diagnóstico”.
Este é um pormenor que faz toda a diferença, até para prevenir o risco de rótulos de doença mental que não se aplicam. Na sua prática clínica, o psiquiatra Henrique Prata não teve conhecimento de casos de SAPM e esclarece porque é que isso tem uma razão de ser: “Hoje, só quando são excluídas as causas não psiquiátricas através de exames – análises sanguíneas e de urina, TACs e ressonâncias magnéticas cranioencefálicas e raio x ao tórax para despistar infeção – é que se encaminha a pessoa para esta especialidade.”
Quanto a Lewis Carroll, sabe-se pelos diários do escritor, que ele sofria de enxaqueca com aura, que descreveu como uma cefaleia biliosa que lhe causava vómitos, mencionando também alterações visuais como a de ver fortificações em movimento, a que se seguiam dores de cabeça, ter-se-á inspirado na sua experiência para escrever um dos mais belos contos infantis. Estava longe de saber, então, que num futuro distante a Ciência lhe daria razão, cunhando os mecanismos neurológicos de tão estranho e ficcional fenómeno com o nome da sua obra.