Não é a primeira vez que uma cave recheada de garrafas preciosas é assaltada. Mas o furto de 45 vinhos de topo, avaliados inicialmente em 1,6 milhões de euros, da adega do restaurante Atrio, no centro histórico de Cáceres, na altura com duas estrelas Michelin (uns meses depois, alcançou a terceira), provocou alvoroço na imprensa espanhola e internacional. Não só pelos contornos do caso, ao estilo de um policial moderno, mas também pelo gosto requintado do casal de ladrões.
Constantín Dumitru, 49 anos, romeno-holandês musculoso e de olhos azuis, e Priscila Lara Guevara, 29, uma rainha de concursos de beleza mexicana, foram capturados após nove meses de investigação – na fronteira entre a Albânia e a Croácia, por força de um mandado internacional –, julgados e condenados, no passado mês de março, a uma pena de quatro anos e meio e quatro anos, respetivamente, acrescida de uma indemnização de cerca de 754 mil euros (o valor final atribuído pela seguradora aos bens furtados). Já as garrafas desapareceram do mapa. Os “ladrões de casaca” declararam-se inocentes e não prestaram declarações durante o julgamento. A não ser no final, quando Dumitru interpelou os juízes, em tom desafiante: “Se eu sou o ladrão, porque é que pergunto a mim mesmo: ‘Onde estão as garrafas de vinho’?”

Quem as levou, sabia bem o que queria. O néctar mais valioso do lote é um Château d’Yquem de 1806, com um preço na carta do Atrio de mais de 300 mil euros, embora os proprietários assegurem que nunca a teriam vendido, “nem por um milhão”. “Aquela garrafa era parte da minha história pessoal, quase parte de mim, da história do Atrio, mas também de Cáceres, dos seus cidadãos, de todos os amantes do mundo do vinho”, afirmaram Toño Pérez e José Polo, sócios do hotel-restaurante, aberto há 37 anos, numa carta divulgada à imprensa.
Os juízes não tiveram qualquer dúvida quanto à autoria do crime, face às provas reunidas pela acusação, desde os testemunhos dos funcionários às amostras de ADN, passando pelas gravações recolhidas naquela noite. A 27 de Outubro de 2021, uma jovem mulher deu entrada no Hotel Atrio, disfarçada, com um passaporte falso suíço, e carregando apenas uma mochila leve. Pediu então para ser reservada uma mesa no restaurante liderado pelo chef Toño Perez, para jantar com o seu companheiro. No final do faustoso menu de degustação de 14 pratos (pelo qual pagaram €400), como era habitual, os comensais tiveram direito a uma visita guiada pelo sommelier à adega, com 45 mil garrafas, considerada uma das melhores de Espanha. Foi mais uma oportunidade para fazerem o reconhecimento do terreno – naquele ano, já lá tinham estado três vezes – e identificarem as garrafas eleitas.
O serviço cinco estrelas mostrou-se infalível e acabou por auxiliar os gatunos. Durante a noite, pelas 2h da madrugada, o gerente que estava na receção recebeu um pedido estranho de Priscila, se tivermos em conta a refeição usufruída há poucas horas: a mulher pediu para lhe ser preparado algo para comer. Após alguma resistência, uma vez que a cozinha estava fechada, o funcionário acedeu a fazer-lhe primeiro uma salada e, depois, um prato de fruta, ausentando-se por uns minutos do local de trabalho. Os suficientes para Constantín conseguir vasculhar o balcão da receção e encontrar uma chave mestra (após uma primeira tentativa falhada) que lhe dava acesso a todo o hotel – uma das circunstâncias que levantou mais estranheza, por ser difícil de identificar entre as demais. As imagens de segurança mostram-no a entrar na cave com uma mochila e dois sacos, bem carregados à saída – como o homem deu entrada no hotel sem bagagem, uma das dúvidas que se colocou é se não haveria uma terceira pessoa envolvida no crime. Pouco depois das 5h, o casal fez o check-out, alegando ter tido um contratempo. Só à volta da hora do almoço é que um dos sommeliers se apercebeu do furto e lançou o alerta. No total, foram furtadas 45 valiosas garrafas. “Aqueles bandidos levaram o que tínhamos de mais especial”, desabafou José Polo, ao jornal britânico The Guardian.
De Constantín Dumitru, sabia-se apenas que tinha trabalhado como limpador de janelas de arranha-cés, embora vivesse uma vida confortável em Madrid, pouco adequada aos ganhos da profissão. Em 2017, conheceu Priscila Lara Guevara numa praia de Barcelona e, pouco tempo depois, viviam juntos na capital espanhola. Ela estudava teatro e fazia alguns trabalhos como baby sitter. O cadastro de Dumitru já contemplava vários furtos semelhantes ao do Atrio – inclusive, em Portugal –, que atestam o seu excelente gosto em vinhos e sangue-frio nos cenários dos crimes. Aliás, duas semanas antes da sua passagem por Cáceres, foi acusado do furto a uma garrafeira de Madrid, de duas garrafas de Romanée-Conti com um valor estimado de € 40.000, um dos vinhos que também tinha sido retirado da adega do Atrio. Nesse dia, segundo as testemunhas, estava acompanhado por uma jovem mulher latina. A cumplicidade mostrou-se firme. Após a captura, os amantes nunca se atraiçoaram e a sua história de amor continua atrás das grades.

As suspeitas sobre os mandantes permanecem. “Desde o início, pensei que eles foram contratados para fazer isto”, afirmou Polo ao The Guardian, no início do julgamento. “Os perigosos são os que os contrataram. Se eles não disserem nada e acabarem na prisão, acho que isso provará que estou certo. Se eles falarem e fizerem um acordo para devolver as garrafas para obter uma sentença reduzida, então estou errado.” Chegado ao fim o processo, tudo indica que estava correto. A advogada da dupla ainda recorreu da sentença, mas o tribunal superior da Estremadura manteve as penas, este mês, concluindo que havia “provas diretas suficientes da participação dos dois apelantes nos eventos”. Contudo, ainda é possível um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O infortúnio também trouxe alguns benefícios para os sócios do Atrio. Segundo o jornal El País, tiveram publicidade a nível mundial, em novembro conquistaram a terceira estrela Michelin para o restaurante e não lhes faltam planos para ampliar o negócio e criar uma fundação cultural. Só não têm esperança de recuperar as relíquias perdidas, especialmente o Château d’Yquem.