Nasci em Viseu, a minha mãe era educadora de infância, e o meu pai advogado. Tenho uma irmã dois anos mais velha.
Desde cedo, a minha mãe percebeu que eu não ouvia. Contudo, cada vez que me levava aos médicos pediatras, e mesmo nos hospitais – quer privados quer públicos –, diziam-lhe que eu tinha o ouvido perfeito, que eram coisas da cabeça dela, que estava a ser mãe-galinha. Ainda não se fazia o rastreio auditivo neonatal à saída da maternidade nem a deteção e intervenção precoce na surdez.
A minha vida era feita com leitura labial. Era um miúdo esperto, conseguia copiar o que os outros estavam a fazer e chegava lá assim. Mesmo as educadoras de infância achavam que eu ouvia bem. Mas a minha mãe teimava, via que eu falava muito mal, e com 4-5 anos levou-me para a turma dela.
Não respondia, trocava muitas palavras, não tinha um desenvolvimento normal da fala, da aquisição da linguagem… Um dia, estávamos a jogar à cabra-cega e, quando me vendavam os olhos, eu tirava a venda para “ouvir”. Tinha olhos que ouvem.
A minha mãe levou-me a Lisboa, e confirmaram o diagnóstico no Hospital de Santa Maria: surdez neurossensorial profunda bilateral de causa indeterminada.
Ser surdo na família foi vivido de forma totalmente normal; já na escola vivia muito isolado. Os meus colegas iam jogar à bola e eu não ia, não conseguia. Os recreios eram muito solitários. Andava numa escola regular, mas a seguir às aulas tive uma professora do ensino especial, que insistiu comigo para dizer bem as palavras e conseguiu que eu falasse. Todos os dias, durante quatro anos, tive aulas com esta professora.
Usava próteses, mas devo referir que quando se põem as próteses não se começa logo a ouvir. O cérebro não está treinado, é preciso educá-lo para ouvir. O mesmo acontece com o implante coclear. O papel do terapeuta da fala é crucial para aprender a falar bem.
“A minha autoestima não existia”
Do 5º ao 9º ano foi uma tortura. As crianças conseguem ser muito más quando não estão informadas e sensibilizadas – chamavam-me mongoloide, aparelhómetros… foi muito duro. O que eu mais desejava era que alguém, um médico, fosse à escola falar do que eu era, do meu problema de saúde, do que eu passava. Nunca aconteceu, mas era o meu sonho.
A minha autoestima não existia. O que me valeu foi a minha mãe. Todas as noites, por mais cansada que estivesse, ela estava sempre disponível para me ouvir. E eu não era introvertido, era extrovertido e contava-lhe tudo o que se passava. O apoio psicológico é muito importante. Temos muita necessidade de falar, há muitas mágoas.
Mudei de escola no 10º ano, e aí comecei a ter mais vida, a ser mais eu. Fiz amigos, namorava, tinha a perspetiva de entrar em Medicina… adorava.
Podia fazer a minha vida com leitura labial, mas compensa sempre ouvir… o som das ondas do mar… Havia sons que eu não fazia ideia… o raspar do sapato no soalho, a música, só a música! Adoro a música Like a Stone (dos Audioslave), mas só quando fiz uma reabilitação auditiva afincada e musculosa é que percebi o som da bateria no fundo. E cada novo som é uma surpresa
Desde pequeno que me fascinava o rosto humano. Por causa da leitura labial, cresci a olhar para os olhos e para os lábios das pessoas. Logo na escola primária arrasava nos testes de Estudo do Meio, na matéria do corpo humano. A professora chamava-me Popeye, e era um reforço muito positivo para mim. Ganhei o fascínio.
Aos 17 anos fui para o Porto tirar o Mestrado Integrado em Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. E fui árduo outra vez por estar sozinho. Depois conheci a Fátima [atual mulher]. Ela era a minha “tradutora” e eu sofria um “bullying soft”. No Internato Médico, uma médica perguntou-me: “Não apontas o que estou a dizer?”. Eu respondi: “Dra., enquanto surdo, eu ou aponto ou ouço”. Mas tive outras e outros professores que compreendiam a minha situação e tudo faziam para ajudar.
Nunca tive aulas de Língua Gestual Portuguesa. O caminho que os meus pais escolheram para mim foi o da oralidade, o do surdo que fala e ouve. Para um surdo, aprender a falar é um esforço brutal – é muito mais fácil comunicar com gestos. Como a leitura labial é a minha muleta, acaba por ser muito mais fácil do que o esforço para ouvir.
Podia fazer a minha vida com leitura labial, mas compensa sempre ouvir… o som das ondas do mar… Havia sons que eu não fazia ideia… o raspar do sapato no soalho, a música, só a música! Adoro a música Like a Stone (dos Audioslave), mas só quando fiz uma reabilitação auditiva afincada e musculosa é que percebi o som da bateria no fundo. O processo é diário, dinâmico e constante, a reabilitação é feita todos os dias. E cada novo som é uma surpresa.
Terminei o curso só com aparelhos auditivos e leitura labial e fui implantado em dezembro de 2011. Tinha passado por todas as próteses: analógicas, semidigitais, digitais, até mesmo o superpotente.
Um mês depois da operação ativa-se o implante e depois começa a terapia da fala. Em 2014, coloquei o segundo implante. Com os dois implantes é como se tivesse quatro ouvidos. A estimulação sonora é brutal, e a vida não me preparou para ouvir assim. É diferente quando se é uma criança implantada.
As pessoas não percebem que há muita diversidade na área da surdez. A surdez não é só a Língua Gestual Portuguesa: há o surdo que quer falar e quer ouvir; o que não quer ouvir, que é gestualista; o que é bilingue, e o que lê os lábios. As pessoas pensam que eu ouço. Eu sou surdo e a surdez não tem cura. A tecnologia é que ouve.
Não vejo uma conotação negativa na palavra deficiência. Cabe-me a mim dar-lhe uma conotação positiva, que é a luta pelos nossos direitos.
Neste momento, infelizmente, estou de baixa devido a burnout. Enquanto médico de família, não faço consultas tipo toca-e-foge. Ouço os utentes e estou com eles o tempo necessário. Mas fico exausto. Consigo fazer o mesmo do que os médicos normo-ouvintes, mas faço um esforço extra para ouvir.
Ainda não há inclusão no trabalho. Esforcei-me tanto para ser médico de família, mas devido ao enorme esforço e falta de condições de trabalho adaptadas a pessoas com deficiência, às vezes questiono-me se não deveria desistir. Gosto de dizer: “Nada correu como eu queria, mas tudo correu como eu sou”.
Depoimento recolhido por Alexandra Correia