É tudo inverosímil quando se aborda a figura de São Vicente, que há 13 séculos tem lugar cativo na nossa narrativa histórica. Nem se sabe se na verdade se chamava Vicente (onomasticamente “aquele que vence a morte”) o diácono de Valência que, a 22 de janeiro de 304, soçobrou à tortura a que foi submetido, para revelar os locais onde estavam os livros de culto e abjurar, suplício ordenado por Diocleciano, considerado o imperador romano mais sanguinário na perseguição aos cristãos.
Por via de um documento do século XII, do cabido da Sé de Lisboa (a fonte portuguesa mais antiga que existe sobre a figura de São Vicente), o diácono “mártir” de Valência entra na nossa narrativa histórica quando, no século VIII, ocorreu um ataque mouro contra aquela cidade mediterrânica e um grupo de cristãos retirou o corpo do santo de um local chamado La Roqueta, onde estava sepultado, e levou-o por mar para o Algarve, para um sítio próximo da atual ponta de Sagres. Assim nasceu o cabo de São Vicente.
Primeira incongruência: à época, os mouros dominavam o Algarve. Era, pois, um território tão ou mais perigoso do que Valência. Mas, com engenho e arte nunca revelados, o grupo de cristãos que resgatou de La Roqueta os restos mortais do diácono “mártir” conseguiu secretamente sepultá-lo num promontório sacro, junto do atual cabo de São Vicente. Depois, e durante quatro séculos, o túmulo algarvio do santo foi guardado por corvos, aves necrófagas, numa metamorfose encantatória da Natureza.
Abreviando, por ora, a história, as relíquias (leia-se restos mortais) de São Vicente seriam trasladadas, em setembro de 1173, do Algarve para Lisboa, onde chegaram no dia 15, transportadas por uma nau e, claro, veladas por corvos. Por isso, a Câmara Municipal de Lisboa arrancou agora com uma vasta programação cultural, que se prolonga até janeiro de 2024, de celebração dos 850 anos daquela efeméride. E a 22 de janeiro último, data da morte do diácono “mártir” no século IV, a Diocese de Lisboa evocou o seu principal padroeiro com uma Missa de Solenidade do Dia de São Vicente.
O santo inspiraria ainda uma “obra de enorme importância simbólica na cultura portuguesa e singular ‘retrato coletivo’ na história da pintura europeia”, como se lê no site do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). São os Painéis de São Vicente, seis pinturas atribuídas a Nuno Gonçalves, que as concluiu em 1470 e que “apresentam um agrupamento de 58 personagens em torno da dupla figuração” do diácono “mártir”. É, explica o MNAA, “uma solene e monumental assembleia representativa da Corte e de vários estratos da sociedade portuguesa da época, em ato de veneração ao patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magrebe”.
Nas tábuas que se crê terem sido pinceladas por aquele pintor régio de D. Afonso V não há corvos. Mas os pássaros negros estão presentes no brasão de armas de Lisboa, pousados na ilustração da nau que transportou as relíquias de São Vicente desde o Algarve. E, até ao século XX, foram incluídos na iconografia religiosa, como guardiães do santo, nota Paulo Almeida Fernandes, historiador do Museu de Lisboa. “Na Sé de Lisboa existiu uma capela com corvos, que desapareceram com a restauração do edifício feita em 1911”, conta.
Restos mortais com vontade própria
Na verdade, Lisboa não pode reivindicar-se como única detentora das relíquias de São Vicente. Numa espécie de multiplicação dos restos mortais do santo, o corpo do diácono “mártir” acaba por supostamente estar em vários locais da Europa.
Há uma versão segundo a qual, no século IX, as relíquias saíram de Valência para Volturno, em Itália, dando depois origem a uma rocambolesca história e indo parar a Metz, em França. Outra versão é a de que as relíquias, nesse mesmo século IX, saem de Valência e vão para o mosteiro de Castres, no sul de França, por intermédio de dois monges que conseguiram saber onde estavam os restos mortais de São Vicente. Existe ainda o relato de que as relíquias saíram de Valência e foram parar à ilha grega de Monemvasia, no século X. Por fim, há a versão de acordo com a qual o rei de Aragão, Jaime I, quando conquistou Valência aos mouros, em 1238, encontrou as relíquias e mandou construir um mosteiro dedicado a São Vicente em La Roqueta, o local, como atrás se referiu, em que o santo teria sido sepultado, em janeiro de 304, após soçobrar à tortura ordenada pelo imperador romano Diocleciano.
“É quase impossível que [os restos mortais] sejam de São Vicente”, diz Paulo Almeida Fernandes, historiador do Museu de Lisboa
“É preciso colocar as coisas num contexto em que a verdade, para a Idade Média, é diferente da nossa”, diz Paulo Almeida Fernandes. Para sustentar a versão lisboeta, acrescenta o historiador, apenas existe o documento do século XII, atrás mencionado. “Quando as relíquias chegam a Lisboa, a 15 de setembro de 1173, de imediato começam a ocorrer milagres”, afirma o especialista, replicando a “verdade medieval”. E “eram de tal maneira importantes que houve a necessidade de o cabido da Sé encarregar um cónego, chamado Estêvão, de escrever uma crónica que seria terminada no final do século XII e intitulada como Livro de Milagres de São Vicente”, acrescenta.
É este o mais antigo e, ao mesmo tempo, mais recente documento que conta como as relíquias chegaram a Lisboa. “O que depreendemos da crónica é o seguinte: em 1139, quando D. Afonso Henriques ganhou aos mouros a batalha de Ourique, trouxe uma série de prisioneiros, entre os quais estavam vários moçárabes, cristãos que viviam em território muçulmano, mas que o rei não distinguia dos restantes reclusos”, descreve Paulo Almeida Fernandes. “Alguns dos prisioneiros foram concentrados em Coimbra, então a capital do reino, e dois dos moçárabes, apesar de idosos, conseguiram fugir para Lisboa, que à época ainda estava sob domínio mouro”, continua.
Após conquistar Lisboa aos mouros, em 1147, D. Afonso Henriques organizou uma expedição ao Algarve para descobrir e resgatar as relíquias de São Vicente, no que fracassaria. “A crónica do cabido da Sé diz-nos que o santo não queria ser descoberto pelo rei, porque não pretendia ir para Coimbra, capital do reino, ou para Braga. Queria ir para Lisboa”, nota o historiador.
E se não for o corpo do santo?
Seguiu-se uma expedição de uma comitiva de lisboetas, em que se integraram os dois moçárabes idosos que tinham fugido de Coimbra para Lisboa, e que conheciam o local, em Sagres, onde São Vicente estava sepultado. Os restos mortais do santo embarcaram, então, na nau que navegou em direção a Lisboa – e a uma controvérsia.
“Neste capítulo, a crónica silencia por completo o rei, que é uma figura ausente nesta parte da narrativa”, assinala Paulo Almeida Fernandes. O escrito do cónego Estêvão, acrescenta, “diz-nos que as relíquias chegaram em segredo de noite”. A comitiva, “que vinha cheia de júbilo por ter encontrado as relíquias, acabou por entrar em Lisboa às escondidas, e dirigiu-se para um templo secundário, a igreja de Santa Justa, que se localizava no atual Rossio”.
Na manhã seguinte, quando é dado o alerta de que as relíquias estão em Lisboa, de imediato rebentam escaramuças. “Há vários grupos na cidade que querem tomar conta dos restos mortais de São Vicente”, continua o historiador. “O primeiro grupo a reagir é o dos bispos e cónegos da Sé. Mas havia outros, como o do Mosteiro de São Vicente de Fora, que também queria ter acesso às relíquias.”
Acontece, então, “uma negociação entre o cabido da Sé e o reitor da igreja de Santa Justa”, conta. “E as relíquias são transferidas para a Sé numa procissão com escolta militar, para evitar que fossem tomadas por terceiros e dispersas por outros locais.”
Os monges do Mosteiro de São Vicente de Fora, porém, não aceitaram tal solução, diz Paulo Almeida Fernandes. Por isso, organizaram nova expedição ao promontório sacro do Algarve e “descobriram mais algumas relíquias – um pedaço do crânio e partes do caixão de São Vicente, que são trazidos para Lisboa e guardados no seu mosteiro”.
E se do escrito do cónego Estêvão se depreende que aquelas expedições foram ocultadas ao rei, D. Afonso Henriques não se deu por achado. “Segundo a crónica, o rei, quando sabe que as relíquias chegaram por fim a Lisboa, fica maravilhado, e reserva para si um braço de São Vicente”, conta o historiador. “Esse braço vai para Coimbra e é depois doado ao Mosteiro local de Santa Cruz, o sítio onde D. Afonso Henriques acaba por ser enterrado, e ali perder-se-á o rasto da relíquia.”
Hoje, diz o especialista, restam dois relicários de São Vicente, ambos guardados na Sé de Lisboa. “Um tem os ossos de uma mão; o outro, acondicionado num pequeno túmulo em madrepérola, acolhe uma coleção de fragmentos de ossos”, especifica.
E, por fim, sobressai a grande dúvida: os tão disputados restos mortais serão mesmo de São Vicente? “Quando se fizer uma análise de Carbono 14 aos ossos, muito provavelmente os resultados vão dizer que aqueles restos mortais são bem mais recentes do que o século IV”, aposta Paulo Almeida Fernandes. “É quase impossível que sejam de São Vicente.”
A propósito, o historiador lembra a datação dos restos mortais dos três mártires de Lisboa (Veríssimo, Máxima e Júlia), que, segundo a lenda, também foram mortos no tempo do imperador romano Diocleciano, e que estão numa arqueta do Mosteiro de Santos-o-Novo. “O resultado da análise por radiocarbono ditou o século VI e não o IV, como era suposto.”
Afinal, as fake news vêm de longe.