Crr, crr, crr. O som da tesoura a cortar o couro, manejada por Tanner Leatherstein, arrepia. O próprio já confessou que por vezes lhe “dói” (usou mesmo esse verbo) “dissecar” (idem) alguns dos artigos, mas, para horror de muitos e gáudio de outros tantos, nem por isso se coíbe de o fazer.
Doeu-lhe com certeza em dezembro, quando fez um vídeo a desmanchar uma Mini Arco Tote Bag lilás, da Bottega Veneta, para poder responder se vale a pena gastar mais de 2 mil euros naquela pequena mala da conhecida marca italiana. Em 59 segundos, vemos como a cortou, separou todos os pedaços de pele que a compõem, arrancou com um alicate os seus acessórios de metal, esfregou-a com acetona e ainda a submeteu ao teste do fogo. Apostamos que as imagens antes de serem editadas continham muitas caretas suas.
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Tanner Leatherstein comprara a malinha por 2 500 dólares (no site da marca, ela custa 2 200 euros, mais portes de envio), e, depois de a sujeitar à sua verificação implacável, conclui que terão sido gastos apenas 250 dólares pelos materiais, couro e acessórios, e pela mão-de-obra. Dez vezes menos do preço final, portanto.
Porém, acrescenta que nunca vira um design tão intrincado, tantos detalhes por dentro e por fora, e uma seleção de peles tão boa. “Uma pessoa paga muito, mas recebe um couro e um trabalho artesanal de primeira categoria”, sublinha.
SÓ À PROCURA DO ‘EFEITO-CHOQUE’?
Tinha começado o vídeo como começa quase sempre, pela pergunta “Vale a pena?”, seguindo para bingo, sem hesitar. Primeira impressão? “Gosto muito da sensação do couro, é pele de cordeiro…”, diz, com evidente deleite. Mas logo pega na tesoura com que corta os lados da mala para conseguir separar as várias tiras entrelaçadas que espalha na mesa à sua frente. “Por causa do seu design, tem quatro vezes a quantidade de couro de uma mala deste tamanho”, nota, antes de recorrer à acetona e de queimar tirinhas de couro.
“Depois de dissecar alguns produtos, gostei muito do couro e do trabalho artesanal da Bottega Veneta. Entusiasmado por dissecar mais marcas no próximo ano, para ver se a minha escolha vai mudar!”, escreveu nos comentários a este seu vídeo que, em pouco mais de um mês, recebeu mais de 32 mil gostos só no Instagram, onde tem mais de 316 mil seguidores.
Tudo “clientes” satisfeitos com o seu “serviço de verificação” e os seus vídeos algo insólitos? Nem por isso. As imagens da pequena mala lilás a ser destruída, aparentemente sem dó nem piedade, foram das que geraram mais reações negativas entre os comentários.
Os mais impressionáveis escrevem “Isto realmente magoou-me” ou “Quase me levou às lágrimas”. Os mais críticos argumentam que o modus operandi de Tanner Leatherstein é desnecessário, à procura do “efeito-choque” só “para ganhar mais visualizações”.
Um seguidor, ele próprio artesão, chama-lhe “um desperdício”, defendendo que um bom profissional seria capaz de desmontar os artigos cuidadosamente e depois voltar a juntá-los. “Trata-se do fruto do trabalho de alguém. Sim, [Tanner Leatherstein] pode comprar o meu artigo feito à mão e destruí-lo à frente de milhares de pessoas. Sim, é o seu dinheiro. Mas, lá no fundo, vou chorar. É simplesmente um desperdício: de materiais, de trabalho e de tempo. Quando estamos na era da preservação, da reciclagem e do reaproveitamento.”
Escreva-se que, quando Tanner Leatherstein utiliza uma espécie de bisturi para “desconstruir” (outro verbo que ele usa) as malas, carteiras, cintos e sapatos, dói menos. E que a sua voz e o seu à vontade com que explica o que está a fazer ajudam a minimizar a dor de o ver destruir os artigos – todos de luxo ou, pelo menos, vendidos a preços à primeira vista demasiado altos.
O seu objetivo é “ajudar a desmistificar a qualidade das peles utilizadas pelas grandes marcas – uma desconstrução de cada vez”, lemos no seu site oficial. De uma maneira lúdica, depreende-se pela sua bio no Instagram: “Ajudar as pessoas a compreender e a experimentar melhor o couro! O entretenimento em couro começa agora.”
Note-se ainda que não ele tem qualquer ligação às marcas cujos materiais e trabalho avalia, o que aliás sublinha em cada um dos vídeos. Tanto assim que, num dos seus últimos “testes”, desmancha uma carteira de homem da mesma Bottega Veneta de que tinha tão boa impressão e não é nada fofinho nas críticas.
TUDO COMEÇOU NA TURQUIA
Volkan Yilmaz nasceu na Turquia, na região da antiga cidade de Tróia, há 36 anos. Tanner Leatherstein nasceu na internet, no TikTok, a 9 de agosto de 2021, pseudónimo que Volkan decidiu criar para “ajudar as pessoas a compreenderem melhor o couro”. E a não serem enganadas pelas grandes marcas.
Um e outro dizem-se apaixonados pelo couro.
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“Vejo-me como um servo vitalício do artesanato em couro”, apresenta-se Tanner Leatherstein no seu site. “A minha missão é ajudar as pessoas. A fim de servir esta missão, crio conteúdos para informá-las sobre o couro e as marcas. E crio a minha própria mala na minha oficina familiar [com a sua marca, Pegai], utilizando couros únicos e naturais, para que se possa experimentar a sensação inesquecível do verdadeiro couro artesanal.”
Em inglês, tanner significa curtidor e leather significa couro. Volkan Yilmaz tinha onze anos quando curtiu pela primeira vez peles de carneiro – cinco – para fazer um casaco de couro para si próprio. Desde então, o que começou como uma brincadeira tornou-se uma paixão para toda a vida.
Quando emigrou para os Estados Unidos, em 2009, começou por ser motorista de táxi em Chicago. Depois, vendeu têxteis e guiou camiões, dessa vez em Nova Iorque. Em 2015, tirou um MBA na Universidade Urbana-Champaign, no Illinois, onde conheceu a sua mulher.
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“Fiz muitas coisas diferentes antes de voltar a trabalhar com o couro”, conta no site. Hoje, mora com a mulher e os dois filhos em Dallas, no Texas, e dedica-se à marca familiar. Tem um irmão que gere os ateliês na Turquia, e ele encarrega-se das vendas a partir dos EUA, via Etsy, Amazon e na sua página.
Mas deixar os consumidores espreitarem os bastidores do mundo do couro de luxo é uma vocação, disse numa entrevista ao site The Cut. “Ajudou-me a tornar claro o propósito da minha vida. É minha missão passar informação sobre os diferentes equívocos sobre o couro – como grandes empresas de luxo tiram partido desta falta de conhecimento e oferecem produtos medíocres.”
Tanner Leatherstein não começou logo a desmanchar os artigos. No início da sua conta do TikTok, hoje com mais de 690 mil seguidores (um número que não tem parado de aumentar, de dia para dia), e mesmo mais tarde no Instagram e no seu canal no YouTube, limitava-se a fazer vídeos em que ensinava o que sabia, mostrando artigos e pedaços de pele.
Até que, um ano depois de aderir ao TikTok, escrevia: “Já chega de lhe sacarem o dinheiro pela ilusão do status em nome do couro! Se gosta de desfrutar de coisas verdadeiras e se quer parecer milionário, compre numa marca de couro pequena e artesanal. E juntava-lhe as hastags #shopsmall #shopsmallbusiness #shopsmart #getreal #beunique #scammed #bigsecret #didyouknow #stopwastingourmoney para chamar a atenção para o facto de as pessoas serem enganadas e gastarem dinheiro desnecessariamente.
Lembrou-se de como os seus amigos passavam o tempo todo a perguntar se os artigos que tinham acabado de comprar eram ou não de qualidade. E de como, quando começou a trabalhar numa empresa, quis comprar uma mala e não conseguiu encontrar nada que apelasse aos seus sentidos, nem nas boas marcas. “Foi então que percebi que as pessoas não sabiam o suficiente sobre o couro e apenas tomavam o preço como sinal de qualidade.”
‘COURO GENUÍNO? SEJA CAUTELOSO’
Hoje, basta ver dois ou três vídeos seus para se aprender que um acabamento do tipo bola de basquetebol é mau porque esconde a qualidade natural do couro e fá-lo parecer de plástico. “O couro é uma coisa que se sente”, nota. “Se houver variações no grão, em vez de um aspeto perfeito, é um bom sinal de que estamos a olhar para um couro naturalmente belo.”
Um cheiro a terra agradável ou neutro, em vez de um cheiro a químicos também é um bom sinal. Assim como um rótulo cheio de explicações. “Os artesãos e as marcas que usam bom couro não conseguem parar de falar sobre isso”, ensina. “Mas se tiver escrito apenas ‘couro genuíno’, seja cauteloso.”
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De t-shirt e avental, vemo-lo a cheirar os artigos e a raspar com a unha, antes de avançar com a tesoura ou com a acetona com que retira o acabamento e verifica a qualidade das peles. “Dá-me uma boa compreensão do couro usado, diz-me se é uma peça rara ou se é mais comum, daí o acabamento grosso”, explicou numa entrevista por Zoom ao programa australiano The Morning Show, em outubro.
Só depois se segue o teste a que chama de “teste das cinzas”, contou. “Sempre que uma marca afirma utilizar peles que foram curtidas com vegetais, gosto de queimar algumas tiras de couro para ver como são as cinzas, porque os diferentes métodos deixam resíduos de cinzas diferentes.”
Nas suas mãos, são poucos os artigos de luxo a escaparem com uma boa avaliação.
Vemos como corta uma carteira Chanel (a Long Classic Zipped Wallet) e fica desapontado. “Apesar da alta qualidade da confeção e a atenção aos detalhes, não há muito a apreciar sobre o couro por causa do acabamento. A camada que o reveste parece ser plástico espesso. A carteira custa 1 210 euros, mas a sua estimativa total é de 83 euros (€9 para os acessórios, €28 para o couro e €46 para a mão-de-obra).
Noutro vídeo, avalia uma pequena mala da Gucci (a Dionysus Leather Super Mini Bag), que custa 930 euros, e conclui que 106 euros seriam suficientes para pagar o couro e a mão-de-obra. E uma mala da Prada (com o acabamento Saffiano) não recebe melhor avaliação: “Parece plástico”, lamenta, estimando que valha 110 euros e não os mais de mil que custou (era um modelo antigo, que já não está à venda).
Para Tanner Leatherstein, saber o verdadeiro custo dos artigos ajuda a saber qual é a parte do preço que vem apenas do logo. “Uma pessoa que não está interessada no status pode mudar de ideias”, nota, na referida entrevista ao The Cut. As marcas têm um valor intangível, claro. “Mas é uma transação melhor tanto para o comprador como para a marca se as pessoas souberem o que estão exatamente a pagar.”