Atire a primeira pedra quem nunca pensou, ao ver uma criança fazer uma birra ou desobedecer aos pais em público, “se fosse meu filho já tinha parado” ou “de certeza que vê isto em casa”.
Porém, quem tem mais do que um filho, ou vem de uma família com muitos irmãos, sabe perfeitamente que, na mesma casa, com os mesmos pais e a mesma educação, existem crianças com personalidades, atitudes perante a vida e comportamentos completamente diferentes.
Talvez muitos pais já se tenham interrogado se a personalidade de cada filho está mais relacionada com a própria criança e não só com o modelo parental adotado. E agora a ciência parece vir confirmar, em parte, esta suspeita.
Um estudo, publicado em novembro de 2021 na revista oficial da Sociedade para o Aperfeiçoamento das Ciências da Psicologia da Universidade da Califórnia, defende que a influência dos modelos parentais de educação poderá ser menos relevante na definição da personalidade das crianças do que aquilo que se pensava.
Ao longo de quatro anos, os investigadores responsáveis pelo estudo analisaram 3880 alunos de 99 escolas alemãs, (o primeiro inquérito foi feito no quinto ano e o último no oitavo) e os respetivos pais, para perceberem qual a relação entre quatro dimensões da parentalidade – envolvimento académico, estrutura, estimulação cultural e definição de objetivos – e os cinco fatores globais da personalidade das crianças – abertura à experiência, conscienciosidade, extroversão, neuroticismo e amabilidade.
“Surpreendentemente, houve uma preponderância de resultados estatisticamente não significativos ao examinar as associações entre as práticas parentais e a personalidade da criança”, revelam os autores.
Ainda assim, o estudo encontrou quatro correlações relativamente relevantes. Estas foram entre o envolvimento dos pais e a consciência da criança, a estrutura parental e amabilidade da criança, a estimulação cultural parental e a conscienciosidade da criança, os objetivos dos pais e afabilidade da criança.
Mais do que definir a personalidade, os comportamentos parentais podem amplificar ou diminuir comportamentos da criança
Daniela Nascimento – especialista em avaliação e intervenção com crianças com comportamentos de oposição e desafio
Daniela Nascimento, técnica superior de educação especial e reabilitação, especialista na avaliação e intervenção com crianças com comportamentos de oposição e desafio, explica que o contributo dos pais acaba sempre por ter uma função reguladora quando se fala de questões de comportamento, que são aquelas que o estudo aborda.
Porém, mais do que definir a personalidade, estes comportamentos parentais “podem amplificar ou diminuir comportamentos da criança”. “Em termos práticos, se estivermos a falar de uma criança perfecionista, o facto de os pais dizerem que ela tem ou não de fazer trabalhos de casa não vai mudar nada, porque, provavelmente, ela vai fazer os trabalhos na mesma”.
Ainda assim, apesar de o modelo parental poder não ter tanta influência quanto se pensaria e não gerar comportamentos, a especialista acredita que “continua a ser vital”. “Todos nós, por termos vivenciado determinadas situações com os nossos pais e termos sido expostos à forma como geriam as situações connosco, acabamos por ficar com muitos dos nossos traços, até de ansiedade, amplificados”.
O mesmo defende a psicóloga Júlia Machado ao dar o exemplo das crianças que, naturalmente são mais impulsivas, impacientes ou agressivas. “Se formos impacientes com elas, reforçando os afetos negativos, obviamente que estamos a contribuir para as suas piores características, algo que pode contribuir para que desenvolvam outro tipo de traços de personalidade”.
Se formos impacientes com crianças naturalmente impulsivas, reforçando os afetos negativos, obviamente que estamos a contribuir para as suas piores características
júlia machado – psicóloga
Os próprios autores da investigação sublinham que “a ligação entre a paternidade e a personalidade da criança é complexa, transacional e dinâmica” e que as descobertas do estudo “não devem desencorajar a pesquisa e a implementação de intervenções parentais”, sobretudo porque “resultados que são estatisticamente modestos no indivíduo podem ter consequências a nível da população”.
Ou seja, a influência relativamente baixa que as estratégias de parentalidade têm na personalidade de uma criança acaba por revelar-se importante ao ser multiplicada por várias crianças que foram educadas segundo essas mesmas estratégias.
Não basta tentar controlar o comportamento
Tanto Daniela Nascimento como Júlia Machado sublinham ainda que esta investigação não usa variáveis que abordem as práticas parentais relacionadas com a forma como os pais comunicam com os filhos, como fazem a resolução de problemas ou como se tornam mais ou menos empáticos em relação à resolução adotada pelas crianças.
Os autores do estudo, aliás, são os primeiros a alertar para o facto de o documento não ser “a palavra final sobre este tópico” e assumem como “um ponto a melhorar” o facto de terem estudado apenas práticas de parentalidade relacionadas com o controlo comportamental das crianças por parte dos pais, “mas nenhuma medida relacionada com a afetividade e controlo psicológico”. “Aqui não há resultados sobre estas questões, a quais podem ter, de facto, muito impacto”, enfatiza Daniela Nascimento.
A forma como se educa um filho pode não ter qualquer impacto quando aplicada a outro
júlia machado – psicóloga
Em suma, sim é verdade que os modelos de parentalidade não definem a personalidade de um criança, mas moldam-na, juntamente com tantos outros fatores. E, sobretudo, não faz sentido pensar que o mesmo modelo pode ser usado da mesma forma em crianças completamente diferentes.
O mais importante, defendem Daniela Nascimento e Júlia Machado não é o modelo em si, mas a forma como este é aplicado, explicado, transmitido à criança. “Crianças diferentes, filhas dos mesmos pais, têm de ser educadas de formas diferentes. A forma como se educa um filho pode não ter qualquer impacto quando aplicada a outro”, defende Júlia Machado.
A personalidade é fruto de muitas coisas
Então, afinal, o que define e contribui para a evolução da personalidade de uma criança? Segundo o estudo, que vai de encontro também à opinião de Daniela Nascimento e Júlia Machado, cada um de nós é o resultado único de uma série de fatores ambientais que se cruzam.
O que os investigadores defendem é que talvez não faça sentido acreditar que existem alguns destes fatores que, mais do que os outros, são vitais para a construção das nossas personalidades. “As evidências sugerem que o desenvolvimento da personalidade é influenciado por um grande número de fatores ambientais, cada um dos quais dá uma pequena contribuição para o desenvolvimento da personalidade das crianças”, lê-se no documento.
Ou seja, a genética, a educação, o ambiente onde crescemos, a ordem pela qual nascemos numa família ou os estímulos que marcaram a nossa infância acabam por definir quem somos em adultos da mesma forma que os modelos de parentalidade estudados, o quais não têm um maior “poder” que os restantes fatores.
“Assim como os fios de uma tapeçaria, os fatores ambientais combinam-se de maneira intrincada e complexa para impulsionar o desenvolvimento da personalidade, e cada fator é um fio essencial, porém pequeno, que contribui para a tapeçaria que é a personalidade”, resumem os investigadores.