Contratos falsos e “assinados de cruz” pelo presidente, Luís Filipe Vieira, e pelo administrador Domingos Soares Oliveira, depósitos e levantamentos, comissões, uma empresa no Senegal. É este, em resumo, o esquema em causa no processo do “saco azul” do Benfica, cuja investigação terminou em agosto deste ano e levou a Polícia Judiciária a propor ao Ministério Público uma acusação contra os arguidos pelo crime de fraude fiscal qualificada.
De acordo com o relatório final da investigação, a que a VISÃO teve acesso, tudo começou, em 2017, com uma comunicação do Banco BIC às autoridades devido a movimentos suspeitos na conta de uma empresa, a “Questão Flexível, Lda”. Sempre que entravam “valores avultados” com origem nas sociedades Benfica SAD e Benfica Estádio, os mesmos eram imediatamente levantados ao balcão através de cheques caixa.
Constituída em janeiro de 2015, a “Questão Flexível” é propriedade de José Bernardes e da sua mulher, Cláudia Bernardes. A Polícia Judiciária não tem dúvidas de que se trata meramente de uma “empresa de fachada, sem qualquer atividade”, até devido à “desorganização em que se encontrava a contabilidade aquando das buscas realizadas em junho de 2018”.
Entre dezembro de 2016 e agosto do ano seguinte, a “Questão Flexível” beneficiou de transferências da Benfica SAD e da Benfica Estádio num total de 1,8 milhões de euros. Através de cheques emitidos em nome de José Raposo, arguido no processo, posteriormente endossados a Paulo Silva, também constituído arguido, foram levantados em numerário 1,7 milhões de euros, entre agosto de 2016 e julho de 2017.
O esquema apresentado pela investigação da Polícia Judiciária e da Autoridade Tributária passa pelo seguinte: depois de recebido o dinheiro, José Bernardes ficava com uma comissão de 11%, pagando 2% a Paulo Silva e a José Raposo.
O papel deste último arguido era essencial: detentor de uma empresa sediada em Dakar, no Senegal, a “CAP-Invest, SARL” competia-lhe a emissão de faturas que justificasse – até perante o banco – as saídas de dinheiro da conta da “Questão Flexível”.
Para suportar legalmente os pagamentos à “Questão Flexível”, refere a Judiciária, a Benfica SAD e a Benfica Estádio celebraram quatro contratos de prestação de serviços. Do lado dos “encarnados”, foi Miguel Moreira – constituído arguido -, antigo diretor financeiro do clube, quem assinou os acordos. Porém, e apesar de se tratar da prestação de serviços informáticos, o diretor de Sistemas de Informação do grupo Benfica, João Copeto, que tinha funções de coordenação e desenvolvimento dos sistemas de software, assumiu “desconhecer estes quatro contratos, acrescentando não ter tido qualquer participação na elaboração dos mesmos, quer em termos técnicos, quer em termos de negociação de valores”, refere a Polícia Judiciária.
“Da análise aos quatro contratos e respetiva faturação, verifica-se que, no mesmo dia, foram emitidas faturas relativas a três contratos (…), sendo que num deles o valor total foi liquidado dois anos antes do prazo de conclusão”, sublinha a PJ no relatório final.
A Judiciária salienta ainda que as faturas relativas aos supostos serviços prestados pela “Questão Flexível” eram apenas enviadas a Miguel Moreira, enquanto outras faturas de empresas ligadas a José Bernardes passavam também por outros quadros do Benfica ligados à contabilidade.
E para sustentar a suspeita de que o dinheiro regressava ao Benfica, o relatório da PJ descreve um email apreendido a José Bernandes: “Por cada valor faturado ao Benfica (sem IVA), José Bernardes ficava com 11% do valor da fatura e devolvia o restante (89%) ao Benfica”, indicando como prova “email remetido por José Bernardes a si próprio no dia 16 de junho de 2017”.
Ouvido na qualidade de arguido, como legal representante da SAD, Luís Filipe Vieira, ex-presidente do clube, “referiu que confia nas pessoas que trabalham no Benfica e que não tem tempo para analisar todos os contratos que tem que assinar”, escreve a Judiciária. Já o administrador executivo Domingos Soares Oliveira afirmou conhecer empresas que prestaram serviços informáticos ao Benfica, como a Microsoft, a Mckinsey e a SAS Portugal, mas “desconhece em absoluto quem sejam a ‘Questão Flexível” e José Bernardes”, empurrando para Miguel Moreira a responsabilidade.
E resume a PJ: “A estratégia de defesa utilizada por Luís Filipe Vieira e Domingos Soares de Oliveira, de que assinaram de cruz os respetivos contratos e de atribuírem a Miguel Moreira o conhecimento do serviço contemplado nos mesmos não colhe em face dos factos apurados na investigação”.
É que se o Benfica assinou contratos com empresas conhecidas e com reputação no mercado, o mesmo não acontecia com a “Questão Flexível” que, como descreve a PJ, “dispunha apenas de um funcionário, o sócio-gerente, José Bernardes, os contratos eram de valores muito elevados para a prestação de serviços iguais” aos contratos, por exemplo, à Microsoft, Mckinsey, entre outras; e, por fim, os relatórios trimestrais que a empresa enviava tinham sido “plagiados dos trabalhos desenvolvidos pelas outras empresas, que efetivamente trabalharam nos projetos do Benfica”.
Para a Judiciária, os arguidos “gizaram um plano criminoso” assente na imputação fictícia de custos às sociedades”, por isso está em causa um crime de fraude fiscal qualificada. A Judiciária, contudo, afirma não ter sido possível “apurar as circunstâncias em que os referidos montantes regressaram ao Grupo Benfica, nem tão pouco a quem é que estes foram efetivamente entregues e qual o seu destino final, nomeadamente se para fins lícitos ou ilícitos”.
Tal como a VISÃO já tinha adiantado, os advogados do Benfica aceitam pagar 250 mil euros pelo crime de fraude fiscal, levando desta forma ao arquivamento do processo. Para a PJ, a vantagem fiscal ficou em cerca de 490 mil euros. Só que o Ministério Público ainda não deu resposta a esta pretensão. Aliás, em vez de encerrar a investigação a 13 de setembro, o procurador pediu mais 60 dias, que lhe foram concedidos.