O número de relatos de mulheres que afirmam terem sido vítimas de “racismo obstétrico” tem vindo a multiplicar-se nos últimos tempos. Entre abusos verbais, restrições de acompanhantes e procedimentos médicos não consentidos, cada vez mais mulheres têm partilhado o que lhes aconteceu durante os partos.
De acordo com o “The Lancet Regional Health Europe”, durante a pandemia de Covid-19 Portugal apresentou taxas de violência obstétrica acima da média europeia, através da realização de episiotomias e manobras “Kristeller” – pressão na parte superior do útero para facilitar a saída do bebé. Contudo, pouco se sabe sobre a influência étnico-racial neste tipo de situações, já que, apesar de ser uma forma de violência que afeta genericamente as mulheres, no caso das mães negras, afrodescendentes e/ou racializadas, trans e não binárias, existe, muitas vezes, um preconceito associado, o que as torna mais suscetíveis a agressões deste género.
Enquanto noutros países já existem dados que evidenciam o racismo vivenciado por mulheres negras nos cuidados maternos, o mesmo não acontecia em Portugal. Foi a partir desta perspetiva que nasceu a associação SaMaNe- Saúde de Mães Negras, a partir de um coletivo formado em 2020 por Carolina Coimbra, Diana Santos, Eunice Baldé, Karla Costa, Laura Brito, Ninfa Lopes e Rita Correia. Num primeiro momento, a associação quis efetuar um levantamento de dados que possam demonstrar, em qualidade e quantidade, a regularidade de práticas de racismo obstétrico em Portugal. Para isso, lançaram um inquérito online em 2021 – ainda a decorrer, neste momento – direcionado à mulheres negras e afrodescendentes, sobre as suas experiências durante a gravidez e parto nos estabelecimentos de saúde materna em Portugal.
Agora, um ano depois de terem lançado o inquérito, a doula e socióloga Carolina Coimbra revela à VISÃO que, de acordo com o que têm visto e ouvido destas mulheres, a negação da analgesia está entre as formas mais comuns de racismo obstétrico no País. Muitos dos relatos recolhidos até agora são sustentados por ideias pré-concebidas de que as mulheres negras são mais tolerantes à dor, e por isso, não lhes é oferecida tão rapidamente, ou de todo, analgésicos como a epidural, afirma Carolina Coimbra. “Não acontece de uma forma tão óbvia”, diz ainda, acrescentando que o pedido acaba por ser continuamente adiado e considerado um exagero quando “realmente têm muitas dores”, até eventualmente chegar a hora de expulsar o bebé e não haver tempo de a epidural fazer efeito.
Carolina Coimbra conta também que, entre os testemunhos recebidos, há alguns de mães que receberam comentários em que se assume que as mesmas já vão ter o terceiro ou quarto filho, precisamente pela ideia de que as mulheres africanas simplesmente têm muitos filhos.
Não sabia lidar com a minha ansiedade e, muitas vezes, devido à minha hipertensão, saía da consulta diretamente para as urgências”
Elsa Batista
Elsa Batista, mãe de três filhos, diz à VISÃO que foi submetida a procedimentos não consentidos, como inspeções físicas de estagiários em fase de aprendizagem, sem a sua aprovação antecipada. “Comecei a sentir-me numa experiência, ali no meio daquilo tudo”, desabafa. Durante os seus três partos, foi frequentemente alvo de abusos relacionados com o seu peso corporal e a cor da pele. “Tem de comer menos cachupa e moamba”; “Como é que se deixa chegar a isto? (referindo ao peso)”; ou “A pele delas é mais resistente”, foram alguns dos comentários depreciativos que se lembra de ter recebido dos profissionais de saúde nos hospitais portugueses. “Não sabia lidar com a minha ansiedade e, muitax vezes, devido à minha hipertensão, saía da consulta diretamente para as urgências”, conta.
Em casos mais severos, a consequência do racismo obstétrico pode manifestar-se através das altas taxas de óbitos maternos e neonatais. A Direção Geral de Saúde (DGS) indica que, nos últimos anos, um quarto das mortes maternas em Portugal (23%) foram de mulheres oriundas dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), o que já levou a associação a questionar às autoridades de saúde o que será implementado para prevenir estas mortes e garantir a saúde e segurança de mães negras em Portugal.
A SaMaNe assegura que se encontra disponível para colaborar na procura de soluções para as desigualdades e iniquidades na saúde das mães negras no País, realçando que não é apenas uma responsabilidade governamental, mas também da sociedade civil em garantir que os direitos destas mulheres sejam garantidos.
Além do questionário, a associação pode ser contactada através do e-mail geral, ola.samane@gmail.com, para apoio emocional, fora do contexto da investigação.