“Não, não é o último álbum da Taylor Swift! Estamos em agosto de 1913. Limpei estes autocromos mágicos do tenente-coronel Mervyn O’Gorman, tirados antes da Grande Guerra. Estão com a cor original, não foram colorizados.”
Stuart Humphryes não se cansa de dizer que as cores de imagens como esta com que abrimos o artigo, tirada na praia de Siouville-Hague, na Normandia, França, por volta de 1920, são todas de origem. E para quem duvida da existência da fotografia a cores no início do século XX, o artista digital e criador de conteúdos inglês desdobra-se em explicações sobre autocromos, o processo inventado pelos irmãos Lumière para retratar a vida como ela era.
Mas o que leva tanta gente a duvidar da idade destas fotografias é o facto de elas nos apareceram tão nítidas e com as cores tão vibrantes. E é para desfazer essas dúvidas que Stuart Humphryes, conhecido na internet como BabelColour, faz questão de explicar o trabalho minucioso de restauro que está por detrás de cada uma das muitas imagens que tem vindo a partilhar no Twitter e no Instagram.
A rapariga de capa vermelha que vemos nesta fotografia era Christina Elizabeth Frances Bevan (1897-1981), filha de Edwyn Robert Bevan e de Mary Waldegrave, conhecida pela família e amigos como “Daisy”. Tinha 16 anos quando o tenente-coronel irlandês Mervyn O’Gorman a fotografou na praia Durdle Door, em Lulworth Cove, Dorset, na costa do Canal da Mancha, no Reino Unido.
Na coleção da Royal Photographic Society, há mais fotografias tiradas por O’Gorman nesse dia de agosto de 1913. As duas famílias eram vizinhas e amigas o suficiente para o tenente-coronel convidar Christina a acompanhá-lo a si e às suas duas filhas num passeio até aquela praia famosa por causa de um arco natural de calcário do tempo jurássico.
Mervyn O’Gorman (1871-1958) foi um dos maiores engenheiros aeronáuticos britânicos. Nos intervalos da sua profissão, foi também um pioneiro do automobilismo, desempenhando um papel fundamental na introdução do Código de Trânsito, e um artista. Gostava de gravura, de trabalhar com laca e de fotografar. Olhando para o seu currículo, não admira que tenha rapidamente experimentado fazer autocromos, um antigo processo de fotografia a cores, patenteado em 1903 por Auguste e Louis Lumière, na França, e comercializado pela primeira vez em 1907.
Um autocromo é o resultado de um processo em que placas de vidro são cobertas por minúsculos grãos de amido de batata tingidos de laranja, verde, e azul-violeta. É uma imagem positiva, portanto única. No início do século XX, sobretudo na década de 30, era o processo principal para se obter fotografias a cores. Só seria destronado a partir de meados dos anos 30, quando surgiram os filmes diapositivos Kodachrome e Agfacolor (comercializados pela Kodak e pela Agfa).
O processo era pioneiro e milagroso aos olhos dos leigos. Porém, o tempo encarregou-se de desvanecer naturalmente as cores nas placas de vidro, sendo que estas muitas vezes chegaram até nós já muito sujas ou danificadas. E é aqui que entra o trabalho de restauro a que Stuart Humphryes chama de Babelisation – um termo que podemos aportuguesar para Babelização e que o artista explica nesta entrevista, realizada por e-mail:
O que é exatamente uma ‘Babelização’?
O meu nome de utilizador online é BabelColour, e visto as pessoas me conhecerem como Babel, cunhei o termo ‘Babelise’ para cobrir todos os processos que uso para melhorar fotografias. Babelizações são o resultado final desse trabalho – fotografias de há mais de um século que parecem terem sido tiradas hoje.
O Stuart apenas realça aquilo que já existe nas fotografias ou acrescenta-lhes algo (cor, nitidez, definição) durante o processo de restauro?
Abordo a imagem original um passo de cada vez: se a fotografia estiver danificada, reparo digitalmente as falhas e restauro o que falta. Limpo, então, a sujidade e as imperfeições, pixel a pixel. Uma vez limpa, olho para a cor. Avalio se existe alguma mancha ou se a cor se espalhou, e começo por corrigir isso primeiro. Quando a cor é uniforme, posso aumentar os níveis de saturação e reequilibrar a imagem para torná-la mais naturalista. Com processos fotográficos antigos, o vermelho tende a desvanecer-se rapidamente, deixando a imagem mais amarelada ou azul. Eu consigo devolver os níveis originais às cores, tornando a imagem vibrante e natural novamente. Uma vez a cor reparada, limpa e restaurada, utilizo algoritmos de redes neurais de aprendizagem profunda para remover o ruído e o grão, melhorando ao mesmo tempo os detalhes.
Como funcionam esses algoritmos?
Os autocromos foram produzidos utilizando grãos microscópicos de amido de batata tingido, que constroem a imagem com milhares de pontos coloridos. Isso dá à imagem o aspeto de uma pintura pontilhista e, ampliando a fotografia, o ruído visual de todas as manchas de cor é acentuado. Os algoritmos fazem a média dos pixels adjacentes para suavizar o ruído de cor e fazer com que a imagem se pareça muito mais com uma fotografia tirada num dispositivo digital.
Qual é o seu objetivo quando transforma estas imagens?
De início, o meu objetivo era fazer as fotografias parecerem contemporâneas, como se tivessem sido tiradas num iPhone hoje e não em placas de vidro há 110 anos. Era um desafio puramente pessoal. Mas, à medida que as pessoas se interessaram, começaram a partilhá-las e a criar um burburinho à volta delas. Surgiram, então, novos seguidores que encheram o Twitter com conversas sobre como foram afetados pelas fotografias. Nesse momento, os meus objetivos mudaram – já não era um mero desafio pessoal, mas sim uma forma de ligar as pessoas ao assunto em questão. Aqueles autocromos originais desvanecidos tiveram mais de um século para se envolverem com o público, mas não conseguiram aproveitar a oportunidade. Por isso, ofereço uma nova forma de nos ligarmos a eles, e é um processo que as pessoas estão a abraçar com o coração. Popularizar os autocromos junto do público em geral tem sido uma experiência incrivelmente positiva.
Onde encontra os autocromos? Em arquivos digitais ou tem acesso a placas de vidro?
Lamento não ter acesso aos arquivos ou a coleções dos museus. Nunca trabalhei com uma placa de vidro original. Tenho de pesquisar na internet, de procurar em blogues e em fóruns e sites para recolher digitalizações de fotografias a cores antigas. Isso também é um desafio, porque tenho de me contentar com os formatos que consigo encontrar. Por vezes, são pequenas imagens muito comprimidas, embora, ocasionalmente, o ruído dessa compressão faça parte do desafio de aperfeiçoamento – tentar fazer com que um jpg de má qualidade pareça de alta definição, mantendo o detalhe.
Quais foram as suas Babelizações mais desafiantes até agora?
Essa é uma pergunta muito difícil! Melhorei centenas de imagens e cada uma delas teve os seus próprios desafios. Algumas estavam tão sujas e danificadas que exigiram muito trabalho e paciência, outras apresentavam uma degradação extrema das cores e precisaram de uma grande reflexão e de tempo para conseguir trazer as cores de volta à vida. Fixei-me a mi próprio sempre parâmetros rigorosos, sendo que o principal é que tenho de trabalhar com as cores presentes na imagem original. Não vou introduzir ou pintar uma nova cor em nenhuma delas, porque isso seria colorir. Há milhares e milhares de pessoas que pintam cores em fotografias antigas, e eu queria fazer algo diferente. Algo único. É o que me diferencia – não pintei fotografias, restaurei-as. Era uma lacuna no mercado a que me atirei de cabeça!
E qual foi a sua maior surpresa, uma vez o processo terminado?
A maior surpresa para mim é o quão popular o meu trabalho se tornou, e o quanto ele envolve as pessoas. Nos últimos dois anos, desde que comecei a restaurar autocromos, ganhei 200 mil seguidores no Twitter. As pessoas dizem-me frequentemente que o meu trabalho dá vida ao passado ou que lhes permite ligarem-se a pessoas que morreram há muito tempo. Faz com que a história pareça contemporânea e faz a ponte entre essa altura e agora. Uma frase comum utilizada é que ‘levanta o véu’. Há uma resposta emocional e uma ligação entre as pessoas de hoje e as retratadas nos autocromos, e essa ligação tem sido para mim uma grande surpresa (e um grande prazer). As pessoas têm agora interesse nos autocromos e na fotografia a cores antiga, o que é um resultado realmente fantástico do meu trabalho.
Quando olhamos para as suas Babelizações temos frequentemente a sensação de que são pinturas. Será por causa das cores ou das poses?
Os processos necessários para criar uma fotografia a cores eram complexos e dispendiosos. Na realidade, só estavam disponíveis para os entusiastas ricos que podiam investir tempo e dinheiro na prossecução dessa arte. Os fotógrafos nunca tinham tido de pensar sobre a cor. Assim, cada fotografia passou a ter de ser cuidadosamente planeada antes de ser tirada. Como o tempo de exposição dos autocromos era cerca de trinta vezes superior ao da fotografia a preto e branco, as pessoas tinham de permanecer paradas durante períodos mais longos. Isto significa que o planeamento, a encenação e as poses eram necessários, embora retirassem a espontaneidade das fotografias. Não são instantâneos rápidos; eram fotografias organizadas e conduzidas e construídas como uma pintura. É por isso que os autocromos podem muitas vezes parecer teatrais e encenados, como se fossem pinturas e não fotografias.
O Stuart está sempre a lembrar que estamos a ver as primeiras fotografias a cores, que não são coloridas. Porque acha que é tão difícil as pessoas acreditarem que são fotografias restauradas?
Acredito que todos os meus seguidores sabem que trabalho com fotografias a cores antigas, mas a natureza do Twitter significa que muitas vezes retweetam o meu trabalho e que o novo público não está ciente do que faço. É por isso que, com cada novo tweet, repito o facto de que as imagens não são colorizadas por mim, de modo a despertar o interesse de pessoas que não sabem que a fotografia a cores existia há tanto tempo. Levo, assim, as pessoas a fazerem perguntas e a abrirem os olhos para a beleza das fotografias a cores do início do século XX.