Grande conhecedor da atividade sísmica e vulcânica no arquipélago açoriano, José Madeira, geólogo especializado em vulcanologia e neotectónica e professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, relativiza a ocorrência de 1800 sismos de baixa magnitude, entre sábado e terça-feira, na ilha de São Jorge, garantindo tratar-se de atividade sísmica “bastante frequente” na região.
Se esta crise vai acabar por esvanecer-se sem consequências de maior, como tantas outras, ou redundar num sismo de maiores proporções, como também já aconteceu, é impossível de prever, mas o mesmo não acontece com uma possível atividade vulcânica, da qual, até ver, não há qualquer sinal.
Em entrevista à VISÃO, José Madeira explica o que se pode esperar tendo em conta o atual quadro sísmico, e de passagem recorda as três erupções ocorridas em São Jorge desde que a ilha passou a ser habitada, no século XV.
Que significado tem esta atividade sísmica nos Açores, traduzida em quase dois mil sismos detetados entre sábado e terça-feira, 94 dos quais sentidos pelas populações?
Este tipo de crises sísmicas é bastante frequente no arquipélago e elas podem evoluir de diferentes maneiras. Temos tido situações em que existe uma crise sísmica com milhares de sismos ao longo de uns quantos dias sem que depois ocorra nada em particular, ou seja, uma sismicidade muito abundante de sismos de magnitude baixa, que por enquanto é o que se está a passar.
Essa magnitude baixa é abaixo de que limiar?
O sismo mais forte até agora teve uma magnitude de 3,3, cerca de 300 a 400 situaram-se em magnitudes na casa dos 2 e a grande maioria dos 1800 tiveram magnitudes ainda mais baixas. São os de dois e tal e três e pouco que são sentidos pela população, porque a sismicidade está mesmo no centro da ilha. Se fosse numa localização mais distante, provavelmente não seriam sentidos.
Rui Marques, do CIVISA (Centro de Informação e Vigilância Sismovulcânica dos Açores), diz que não é preciso uma magnitude muito elevada para um sismo provocar danos em São Jorge. A partir de que magnitude poderá haver estragos?
Vai depender da profundidade a que ocorrer e da resistência sísmica das edificações. As construções modernas nos Açores são antissísmicas, algumas construções antigas terão sido reforçadas, mas as construções tradicionais são muito frágeis desse ponto de vista. Como os sismos estão a ocorrer em zonas muito próximas de uma série de povoações – Velas, Rosais, Beira, Santo Amaro, Queimada, Urzelina, etc. -, é possível que um sismo de magnitude 4, relativamente baixa, venha a causar danos em estruturas de menor resistência sísmica, se for superficial. Se for um sismo um pouco mais forte, mesmo que ocorra a uma profundidade maior, já poderá afetar mais edifícios. E, evidentemente, um sismo de magnitude 6 causará danos. No caso do sismo de 1998, ao largo do Faial, causou uma destruição enorme, não porque a sua magnitude tivesse sido significativamente elevada, mas porque foi um sismo muito próximo e grande parte das construções tinha uma fraca resistência sísmica. Portanto, há uma série de parâmetros que entram em linha de conta em termos da destruição causada.
Voltando ao raciocínio inicial. Um possível desenvolvimento da atual situação é continuar neste registo de sismos de baixa magnitude por mais algum tempo até a crise sísmica desaparecer sem consequências de maior. Quais são os outros cenários admissíveis?
Outro cenário possível, que já tem ocorrido nos Açores, é haver uma crise sísmica com muitos sismos de pequena magnitude e, de repente, ocorrer um sismo de magnitude média-alta. Podemos ter uma situação em que esta sismicidade, que por enquanto está a profundidades estimadas entre 10 a 20 quilómetros, comece a ascender, sugerindo a introdução de magma e uma potencial erupção vulcânica. Essa erupção poderá ocorrer em terra ou no mar. Em São Jorge, nesta zona vulcanicamente ativa, houve dezenas ou centenas de erupções nos últimos oito mil anos, é um sistema bastante ativo. Desde o início do povoamento da ilha [séc. XV], já houve três erupções, duas em terra e uma no mar. No caso desta, ocorreu em 1964 e não teve qualquer consequência, nem sequer foi observada à superfície, até porque estava muito mau tempo. Sabemos que houve uma crise porque houve também tremor vulcânico, um tipo de registo sísmico diferente daquele que estamos a observar neste momento, pois sugere movimentação de fluidos magmáticos em profundidade. As outras duas ocorreram em terra. A primeira foi em 1580 e começou muito próximo da vila das Velas. A segunda data de 1808 e é a chamada erupção da Urzelina, que acabou por destruir parcialmente essa povoação. Ainda hoje se vê o que restou da igreja, ou seja, a sua torre sineira. Houve mortes nestas duas erupções, não se sabe exatamente quantas, mas terão sido cerca de uma dezena em cada.
As erupções em São Jorge têm características próprias?
Têm uma composição basáltica, com um magma mais fluído que dá erupções mais efusivas e, portanto, de menor atividade explosiva e menos perigosas. Por norma, as erupções mais efusivas produzem menor quantidade de fluxos piroclásticos [muito velozes] e a lava é emitida sob a forma de derrames lávicos, que não avançam a uma velocidade muito elevada, exceto se tivermos uma taxa de efusão alta e simultaneamente um terreno muito inclinado. É o que acontece em São Jorge, que por isso apresenta essa perigosidade. Em 1580, o primeiro foco eruptivo estava localizado numa vertente inclinada e, à medida que o cone foi crescendo, deve ter colapsado e deu origem a uma nuvem ardente que apanhou algumas pessoas. Já em 1808, aparentemente ocorreu uma interação entre a conduta vulcânica e os aquíferos subterrâneos que provocou uma fase explosiva com fluxos piroclásticos de altas temperaturas. Embora a população da Urzelina já tivesse sido evacuada, o padre tinha permanecido até a lava estar quase a chegar à povoação e pediu ajuda à população vizinha para recuperar imagens e outros materiais da igreja. Esse grupo de pessoas foi subitamente apanhado por um desses fluxos piroclásticos. Há ainda outro perigo a ter em conta: é uma ilha muito longa e estreita, com cerca de 55 quilómetros de comprimento por apenas sete de largura máxima, e por isso muito facilmente as estradas que a atravessam longitudinalmente podem ser cortadas pelos derrames lávicos.
Por enquanto, os níveis de dióxido de carbono no solo encontram-se normais. O que é que este dado nos indica?
O magma é rico em voláteis, fluidos e gases que nele se encontram dissolvidos quando está sob pressão, em profundidade. À medida que o magma ascende na crosta, por descompressão, os gases vão sendo libertados, tal como, quando abrimos uma garrafa de champanhe, o dióxido de carbono que está dissolvido no champanhe se liberta sob a forma de bolhas. Uma vez que existem levantamentos do teor de gases vulcânicos na ilha de São Jorge, nomeadamente de dióxido de carbono, sabe-se qual é o nível normal. Se os valores sofrerem um grande aumento, isso significa que está a ser injetado magma no sistema vulcânico, é um sinal premonitório de uma possível erupção.
Não é o caso. O facto de todos os sismos detetados até ao momento terem origem tectónica aponta no mesmo sentido?
Por enquanto, não há qualquer sismicidade com características de movimentação de fluidos magmáticos, que têm um sinal distinto dos sismos tectónicos, resultantes da fraturação da rocha. Os sismos que têm sido registados têm características puramente tectónicas. Não há qualquer evidência de estar iminente uma erupção.
Existe mais algum indicador que permite antecipar uma possível erupção?
A deformação do terreno. Quando o magma se desloca para zonas mais superficiais, normalmente o terreno incha, sofre uma inflação. Essa deformação topográfica pode ser detetada através de imagens de satélite ou instalando uma rede de GPS de precisão, objetivo com que partirá para os Açores, esta quarta-feira, um colega do Instituto Dom Luiz (da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa). Também neste caso, nada indica que haja qualquer deformação no terreno indiciadora de ação vulcânica na área onde está a ocorrer a crise sísmica.
Os Açores encontram-se numa zona de interseção de três placas tectónicas importantes. Isso ajuda a explicar esta atividade?
O arquipélago dos Açores está localizado naquilo que se designa de junção tripla, porque temos três placas tectónicas em contacto nessa região. As Flores e o Corvo estão na placa americana e as restantes ilhas, do Grupo Central e do Grupo Oriental, localizam-se numa faixa com uma certa largura que corresponde à fronteira entre as placas Eurásia e África. É por causa desta localização geodinâmica que temos atividade sísmica e atividade vulcânica no arquipélago. Por outro lado, se não existisse atividade vulcânica, não existia arquipélago. Foi ela que originou aquelas ilhas, assim como todos os arquipélagos oceânicos.