Quem ainda se lembra que o vírus VIH, que provocou a pandemia da SIDA nos anos 1980, parece ter saltado dos grandes primatas para os seres humanos, através da ingestão de um pedaço de carne infetado? Tal como a atual Covid-19, trata-se de uma zoonose, uma doença infeciosa transmissível a partir de animais e que depois se dissemina entre humanos. Esses vírus saltam a barreira da espécie, dando origem a um novo micro-organismo que se espalha de pessoa para a pessoa.
De acordo com a World Wild Fund, todos os anos surgem entre três a quatro novas doenças zoonóticas, representando 60% das infeções contagiosas conhecidas. Dessas, estima a WWF, 72% foram transmitidas por animais selvagens. Deixa-se aqui os exemplos da Raiva, Brucelose, Dengue, Febre da Carraça, Gripe das Aves ou BSE.
É por isso que, defende o virologista Pedro Simas, “os animais domésticos devem estar controlados e vigiados a montante para evitar acidentes e proteger a saúde pública”. Se assim for, os animais podem servir de sentinelas no caso de possíveis transmissões a humanos. “Em Minamata, no Japão, nos anos 1950, alguns gatos começaram a demonstrar sinais de doença neurológica grave. Mais tarde, esses mesmos sintomas apareceram em pessoas. Veio a descobrir-se que esses comportamentos eram causados pela contaminação do rio com mercúrio e consequentemente os peixes que nele existiam por parte de uma fábrica. Esse metal pesado acabou por entrar na alimentação de pessoas e gatos e provocando esses danos”, recorda Pedro Simas.
O uso de antibióticos nos animais para consumo humano é outro problema que deve ser rigorosamente controlado, caso contrário dará azo a que novas estirpes de bactérias se tornem resistentes, aumentando assim o risco de transferência a humanos, sem que haja forma de as combater.
Vírus mais difíceis que outros
“O que se passou com o SARS-CoV-2 é que não conseguimos controlá-lo. Quando o identificámos, já ele estava disseminado pela China e rapidamente chegou à Europa. No caso do SARS-CoV-1 tudo foi mais fácil, porque esse vírus tinha características muito específicas – antes de as pessoas começarem a estar contagiosas, já apresentavam sintomas, como febre, o que permitia isolar-se imediatamente o doente e evitar que a doença se espalhasse”, explica o virologista.
A mesma coisa se passou com o HIV. Estima-se que o vírus tenha saltado dos grandes primatas nos anos 1930, mas o primeiro caso da doença só se identificou cientificamente, nos EUA, 1981. Desde aí a ter-se tornado uma epidemia foi um ápice. “A SIDA ainda hoje existe, porque não se conseguiu erradicar o vírus através de uma vacina. No entanto, está controlada através de diversa medicação, até profilática para prevenir possíveis consequências de comportamentos de risco”, nota o especialista.
É por causa destas e de outras, que a Organização Mundial da Saúde fala do conceito de One Health – Uma Só Saúde desde os anos 1930. Hoje, uma corrente defende a necessidade de cuidar da saúde animal para garantir a saúde humana, numa abordagem holística e multidisciplinar, sem nunca ter conseguido que vingasse como tendência dominante e mundial.
Em Portugal, o tema será abordado profundamente no XVII Congresso Internacional Veterinário Montenegro, que reunirá cerca de dois mil profissionais de saúde, em Santa Maria da Feira, de 22 a 23 de outubro.
Só há uma saúde
Esta visão, em prática em alguns países mais desenvolvidos, pretende que os três setores da saúde – humana, animal e ambiental – estejam em contacto entre si para melhorar a segurança dos alimentos de origem animal dirigidos ao consumo humano, a vigilância, o controlo, a prevenção e a avaliação do risco associado à disseminação de doenças infeciosas transmissíveis dos animais para os humanos e implementar medidas que garantam a redução da aplicação de antibióticos em animais para evitar problemas graves de resistência a esses fármacos em humanos.
Luís Montenegro, diretor clínico do Hospital Veterinário Montenegro e presidente do congresso, lamenta que hoje ”cada área com responsabilidades na saúde trabalhe por si, sem planificação geral”. Esta é a altura ideal para lembrar como se torna necessária a cooperação de, pelo menos, profissionais de saúde humana (médicos, enfermeiros, profissionais de saúde pública, epidemiologistas), de saúde animal (veterinários, trabalhadores agrícolas), do meio ambiente (ecologistas, especialistas em vida selvagem).
Se assim já fosse, talvez esta pandemia não tivesse atingido tamanhas proporções, acredita o veterinário. “Cada vez invadimos mais o habitat de animais selvagens, como o pangolim [parece estar na origem da transmissão do vírus SARS-Cov-2 aos humanos]. No conceito One Health, os especialistas em ambiente não teriam permitido que invadíssemos o espaço daqueles animais, os veterinários teriam evitado que esses animais, que não fazem parte do circuito alimentar, fossem parar ao prato do Homem, e os médicos teriam beneficiado da informação transmitida pelo veterinário, confinando o vírus antes de ele se espalhar.”
Pode ser que para a próxima todos os intervenientes estejam mais alerta para esta colaboração e assim a luta contra os micro-organismos transmitidos por animais corra melhor para o nosso lado.