A fuga de João Rendeiro, ex-presidente do Banco Privado Português (BPP), para destino incerto, é apenas mais um capítulo na longa história de imbróglios jurídicos, ditados pelas convenções de extradição internacionais (ou a inexistência das mesmas). E nem sequer os mandados de captura internacional, emitidos pelo tribunal, com o objetivo de colocarem o antigo banqueiro em prisão preventiva, no âmbito de um processo em que foi condenado a dez anos de prisão (ainda em fase de recurso), e que colocam o seu rosto na lista dos mais procurados da Europol e Interpol, vão conseguir alterar este cenário.
A enciclopédia da justiça luso-brasileira está repleta de casos semelhantes, capazes de cobrir todo o Atlântico. Ao longo dos últimos anos, Brasil e Portugal têm servido de refúgio a foragidos, mais ou menos mediáticos, de ambos os países. Ainda sem certezas quanto ao paraíso escolhido por João Rendeiro – o Jornal de Notícias, na sua edição desta quinta-feira, avança que o antigo banqueiro se prepara para viver no Belize, país da América Central, depois de ter partido de Londres num jato privado – a VISÃO recupera uma lista de cinco exemplos emblemáticos de individualidades que, nos últimos anos, aproveitaram as razões insondáveis da lei para escaparem impunes às decisões dos tribunais.
DUARTE LIMA: DE LÁ PARA CÁ
Duarte Lima, advogado e político, figura de proa do PSD, foi acusado, em outubro de 2011, pela Justiça brasileira, pelo homicídio de Rosalina Ribeiro (ex-secretária e companheira do industrial português anteriormente falecido Lúcio Tomé Feteira). O corpo da portuguesa foi encontrado na berma de uma estrada, a cerca de 100 quilómetros do Rio de Janeiro, no Brasil. O móbil do crime, segundo a acusação, seria a apropriação de 5,2 milhões de euros que, pouco tempo antes, para escapar às disputas entre os herdeiros de Feteira, a ex-amante do empresário de Leiria colocara nas contas de Duarte Lima. Desde Portugal, o advogado e político clamou inocência – mantendo-se afastado das autoridades brasileiras. Numa decisão inédita, o juiz Pedro Lucas determinou que o acusado será julgado por este crime em Portugal (no Tribunal de Sintra). O magistrado recordou que, tanto o arguido como a vítima “são cidadãos portugueses”, e que Duarte Lima residia em Portugal à data dos factos. O arguido, por seu turno, sabendo que, se for julgado no Brasil, pode ficar fora da alçada da Justiça portuguesa, insiste para ser julgado lá. A situação é juridicamente complexa e até inédita: uma transferência para o Brasil até poderia transformar-se, em teoria, na fuga perfeita, se Lima apostasse numa construção frágil do caso pela investigação brasileira. Entretanto, Duarte Lima foi condenado a seis anos de prisão, no âmbito do processo BPN/Homeland, pelo qual, aos 65 anos, continua a cumprir pena, no estabelecimento prisional da Carregueira.
PADRE FREDERICO: FOTÓGRAFO EM COPACABANA
Na manhã de 2 de maio de 1992, o corpo sem vida de Luís Miguel Escórcio Correia, de apenas 15 anos, seria encontrado no fundo de uma ravina de mais de 50 metros, perto da localidade do Caniçal, na Ponta de São Lourenço, no extremo oriental da ilha da Madeira, com sinais de agressões. O então padre Frederico Marcos da Cunha, pároco na paróquia de São Jorge, seria colocado por testemunhas no local do crime. Em tribunal, o coletivo de juízes concluiu que o padre Frederico tentou abusar do jovem e, perante a recusa deste, entrou em pânico, acabando por empurrá-lo ribanceira abaixo. Foi condenado a 13 anos de prisão por homicídio e práticas sexuais impróprias com menor, mas, cinco anos volvidos, a 10 de abril de 1998, aproveitou uma saída precária do estabelecimento de Vale de Judeus para fugir do país: foi de carro até Madrid, onde a sua mãe o esperava, e seguiu de avião para o Rio de Janeiro – mesmo estando com o passaporte apresado, desconhecendo-se, até hoje, em que circunstâncias e com que identidade conseguiu viajar. Atualmente, vive em Copacabana, um dos bairros cariocas mais exclusivos, dando missas em paróquias incertas, e dedicando-se à fotografia abstrata. Continua a negar todas as acusações.
FÁTIMA FELGUEIRAS: REGRESSO A CASA
Em maio de 2003, Fátima Felgueiras, presidente da câmara de Felgueiras (eleita pelo PS), era acusada, no âmbito do caso Saco Azul, de 23 crimes, entre os quais peculato e corrupção. Antecipando-se ao mandato de detenção que pendia sobre si, fugiu, dias antes de ser detida, para o Brasil. Fátima Felgueiras era filha de antigos emigrantes portugueses naquele país, tinha vindo para Portugal com quatro anos e mantinha, por isso, a dupla nacionalidade. Protegida por esse estatuto, encontrava-se, assim, a salvo das pretensões de extradição comunicadas pela Justiça portuguesa, mas acabaria por regressar, em 2005, a Portugal, pelo seu próprio pé. Foi imediatamente detida, para, logo a seguir, ser novamente libertada, aguardando julgamento em liberdade, depois de os acontecimentos terem “esvaziado” o risco de fuga. No gozo dos seus direitos cívicos, Fátima Felgueiras candidatou-se como independente à câmara de Felgueiras, em 2005, à frente de um movimento com o sugestivo nome de “Sempre Presente”, e venceu as eleições. Dos 23 crimes de que era acusada, Felgueiras acabaria condenada, em 2008, por apenas três deles. Em julho de 2011, depois de mais idas e vindas a tribunal (nomeadamente, para responder perante uma nova acusação de peculato e participação em negócio) seria absolvida de todos os crimes no âmbito do processo Saco Azul. E, em maio de 2012, o Tribunal da Relação de Guimarães confirmaria, definitivamente,a absolvição dos crimes de que estava acusada.
RAUL SCHMIDT: EXCEÇÃO À REGRA?
O brasileiro Raul Schmidt, que também tem nacionalidade portuguesa – por via dos seus avôs –, pode tornar-se numa exceção à regra, na relação judicial entre Portugal e o Brasil, pois o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, em 2018, extraditar o arguido da Operação Lava Jato para o seu país-natal (decisão que ainda não foi cumprida, mas que o tribunal mantém como válida), uma vez que considerar que Schmidt conseguiu a nacionalidade portuguesa já depois de o processo de extradição estar concluído. O empresário luso-brasileiro é alvo de dois processos por corrupção, organização criminosa e branqueamento de capitais. As autoridades brasileiras suspeitam que Raul Schmidt agiu como intermediário de operações da Petrobras, pagando luvas a Renato de Souza Duque, Nestor Cerveró e Jorge Luiz Zelada, todos ex-diretores da petrolífera estatal brasileira. Em 2015, foi emitido um alerta em seu nome pela Interpol e, em março desse ano, a Polícia Judiciária apanhou-o num apartamento de luxo na capital portuguesa. Para já, Raul Schmidt está solto em Portugal, com passaportes apreendidos, sujeito a duas apresentações semanais às autoridades, e proibido de se ausentar do país. Aguarda por um pedido de revisão de sentença, apresentado ao Supremo Tribunal de Justiça.
JOSÉ ANTÓNIO PALINHOS: LÍDER DO TRÁFICO VIVE LIVRE
José António Palinhos, de 70 anos, continua a figurar na lista dos criminosos mais procurados pela Interpol, depois de ter escapado por entre os dedos da Justiça brasileira, que o condenou a 28 anos de prisão por tráfico internacional de droga. Durante pelo menos duas décadas, este português foi a peça-chave de uma organização criminosa que, a partir do Brasil, era responsável por uma rota marítima que alimentou Portugal e a Europa de cocaína sul-americana. Com o tráfico, tornar-se-ia milionário e poderoso, figura da alta-roda carioca, dono de um império que incluía alguns dos mais populares restaurantes do Rio de Janeiro – frequentados por estrelas como Madonna ou Sting –, carros de luxo, imóveis e terrenos nos pontos mais nobres da Cidade Maravilhosa. Em 2005, na sequência da Operação Caravelas, liderada pela Polícia Federal brasileira, Palinhos ver-se-ia atirado para a cela de uma cadeia de segurança máxima, mas, apenas 974 dias depois – e ainda sem se perceber muito bem como ou porquê –, um novo juiz deu-lhe o privilégio de cumprir o resto da pena num regime semiaberto, que logo aproveitou para se pôr a monte, fugindo para Portugal, via Paraguai e Madrid. Quando o alerta da polícia brasileira chegou a este lado do Atlântico, de pouco ou nada serviu. Em 2011, a emissão do mandado de captura internacional valeu-lhe 43 dias de prisão em Lisboa. Porém, expirados todos os prazos legais, tornar-se-ia apenas mais um capítulo do rol de imbróglios jurídicos ditados pelas convenções de extradição assinadas entre Portugal e o Brasil. Em julho, a VISÃO descobriu-o a viver, livre e tranquilamente, num apartamento com vista para a Praia de Santo Amaro de Oeiras.