Munido com a sua lâmpada laser, o Aladino americano anda há já quase um mês, de gruta em gruta, em busca do Diabo, sem mais resultado do que multiplicar-lhe o rosto como na Dama de Xangai, de Orson Welles. Em pouco menos de três semanas, esse alvo clássico do imaginário cristão do Ocidente transformou-se no fantasma por excelência da mitologia americana privada de inimigo plausível e histórico após a queda do Muro de Berlim. O velho inimigo do Homem, na versão evangélica, converteu-se na Coisa terrífica, abjecta, fascinante, onde Hollywood, para efeitos de diversão, de exorcismo e proveito, condensou o Mal. O Mal de sempre, com tecnologia de ponta em lugar de consciência e, claro está, de coração.
Confrontada com um desafio monstruoso, a América – a América do Pentágono, da Casa Branca, de Wall Street, mas também a do cidadão comum – achou que devia mimetizar-se, também ela, com o “monstro” que ousou passar a papelquímico os pesadelos de todosos Independence Day, fabricadoscom tanta complacênciapela capital dos sonhos mundiais. Como se estivesse à espera, inconscientemente, de aproveitar a brecha que a Guerra do Golfo, a miniguerra do Kosovo e, sobretudo, o fim da União Soviética, abriu à sua juvenil vertigem imperial. Sem uma hesitação, a América mobilizou os seus formidáveis recursos militares, diplomáticos,mediáticos, não sem algum sucesso, neste combate de um novo género em que os seus interesses de grande potência, e os do mundo, como espaço democrático ameaçado, pareciam a mais justiceira, se não justa, das causas. Quem não seguiria a grande nação agredida de maneira tão desapiedada e certeira, naquilo que se apresentava como retaliação ética e juridicamente legitimada pelo direito das gentes?
A urgência da resposta, a convicção, antecipada por actos de terrorismo anteriores, de quem era, de onde vinha e onde estava o Inimigo – cujos contornos ainda na hora actual põem questões a que ninguém respondeu cabalmente – mobilizaram o povo mais poderoso da terra para um combate no escuro, que, em breve, iria tornar – se está tornando – no combate contra a Coisa, tão maléfica na sua definição física e metafísica, tão inlocalizável em termos jurídicos, éticos e políticos, que nenhum São Jorge Bush-Harrison Ford com o seu pobre verbo exorcista e armadura reluzente a podem desafiar e vencer num daqueles finais de western tão caros à cena americana.
Quem admira realmente a América, quem sabe que o nosso destino, não apenas de ocidentais, mas de habitantes de um mesmo planeta, está intrinsecamente ligado ao dos Estados Unidos, não sente nenhum regozijo diante da sua actual perplexidade e desencanto, em vias de se volver cruzada solitária. Mesmo a prevista e rápida vitória contra um Afeganistão inerme os salvará do Vietname ético em que começaram a meter, não só as suas mãos, mas as nossas, ocidentais. A memória americana, sempre à espera do futuro para existir conta pouco, ao lado de culturas e civilizações milenárias tratadas na mais cega tradição colonialista e imperialista do Ocidente como meros “objectos” de História, só por serem pobres e tecnologicamente atrasados, mas talvez por isso, mais imunes do que outros, à tentação de trocarem a identidade e a alma por um saco de arroz entre uma panóplia de bombas.
O terrorismo e os terroristas que perpetraram o ataque às Torres não são uma miragem dos Estados Unidos, mas a Coisa em que estão transformando o alvo indiscriminado, que lhes escapa, escolhendo por comodidade e cegueira um povo e gente por eles armada, instrumentalizada e agora elevada a bode expiatório, é uma invenção digna dos Ubus que actualmente conduzem uma grande nação para o abismo. Abismo de ressentimento e ódio de uma considerável parte da Humanidade que já era História e cultura quando nem a América existia. Abismo de absurdidade imaginando que por mero voluntarismo a América possa derrotar o Monstro em nome do Bem e do Mal que ela definiu como se fosse Deus, invertendo e copiando à letra os desígnios que atribui à anti-cruzada ocidental de Bin Laden.
A América nunca esteve tão perto de inventar a Coisa contra a qual convida o mundo a cruzar-se. Um mês após o início do que, na mais indulgente das hipóteses (a de John Le Carré) é descrita como uma “guerra atroz, necessária e degradante”. O “Monstro” continua a gerir o seu império de areia movediça. Com mais algum tempo, poderá revestir a túnica de Saladino. Então o Ocidente, e os Estados Unidos, em primeira linha, conhecerão face a face a Coisa que, com tanto fascínio, querem encontrar. Para se libertarem da outra Coisa que levam dentro e são incapazes de vencer. Ou sequer, de reconhecer.