Pensei muito antes de deixar que os dedos cumprissem o desígnio da cabeça. Pensei nos meus que, depois, leriam os maiores impropérios de quem sabe pouco e entende menos. Os comentadores de teclado, a fermentar ódio e ignorância. Pensei muito para, depois, deixar de pensar demasiado. E escrever. Por mim e por todas as mulheres. Pela minha filha. E por ti.
Há um tipo de violência que não se vê na pele. Não se prova a olho. Não se fotografa numa esquadra e não se mede em tribunal. Há um género de violência que não é crime, que não condena ninguém, que não está inscrita no Código de Processo Penal.
Os maus-tratos psicológicos são a forma mais discreta e subtil de exercer poder e humilhação.
Existem entre casais formas de bullying encapotado e agressivo, disfarçado de incentivo, camuflado de investimento, travestido de apoio. A forma mais abjecta e patológica de humilhar aquele com quem se vive e obrigá-lo a ser o que não é.
Partilhei um ano e meio de vida com um e só há pouco tempo me apercebi que foi demasiado. E só há pouco tempo tive a plena consciência que aquilo que ouvi e senti foi bodyshaming. Por ser algo tão pouco debatido, por ser algo que costumamos encarar como reparos de somenos importância, tendemos a menosprezar os danos internos que causam. Aprendi a rir quando me dizia “mas vais repetir?” ao almoço. Ou quando tirava uma fatia de queijo de entrada e sentia o olhar reprovador acompanhado do “também tens aí tomate cherry”. Já engoli com mais dificuldade um amuo quando vestia uma camisa que resultava num “fica demasiado justa os braços e não te favorece” ou a diária insistência “quando é que vais para um ginásio. Só te fazia bem”. Ou os términos dos abraços da manhã, que se pontuavam com um “só te falta perder 10 quilinhos”.
Quando se veste o 36, depois de longos meses de disciplina e rigor, aceitar que o meu corpo é uma máquina perfeita de sintonia e equilíbrio, que me faculta dançar, mexer, sorrir e andar de forma saudável, é um processo nem sempre simples quando se vive com o preconceito, quando se dorme com a fobia. Por isso, o meu sorriso já não se fixava no rosto quando se repetiam as fotografias a dois até não se evidenciar o meu “bracinho gordo”.
Não há amor sem amor-próprio. Não há amor no desamor. Não há amor onde o meu amor não cabe. Porque em amor, não se pedem larguras, não se exigem padrões, não se convencionam estereótipos
E morria qualquer músculo do canto da boca para o sinal de acomodação, quando o dedo indicador me passava pelo queixo, camuflado de ternura e acompanhado “deste queixinho duplo fofo”. Deixou de haver qualquer esgar de condescendência quando, perante uma foto minha com 50 quilos, suspirou “quando vi esta foto apaixonei-me por esta pessoa. Podias voltar a ser esta pessoa.”
Eu era aquela pessoa. Nunca o deixei de ser. Só passava menos fome e era profundamente mais feliz… para deixar de ser, aos poucos, com a referência insistente e declarada à obsessão com o peso dos outros, quando na praia, sentados na areia, com a brisa quente de julho, olhando os outros corpos que desfilavam molhados, me disse “tenho nojo de banhas”. Gelei por dentro. “Sinto nojo de gente gorda”. Semicerrei os olhos:“Também tenho o que chamas de banhas. Incomoda-te?”… sem respirar fundo ou equacionar que o peso das palavras têm a velocidade de um cometa e o poder destrutivo de um governo de Trump, respondeu com rapidez “sim, incomoda”. Comecei a flectir as pernas para dali sair enquanto ouvia “sabes que ainda tens peso a mais e não te tens esforçado”. Sacudi a areia das nádegas enquanto ouvia “sabes que te amo mas não me sinto bem com o teu peso”. Peguei na toalha, vesti a t-shirt S e os calções M, enquanto ouvia “vais-te embora? Há assuntos tabu? Não se pode falar do peso? Não tens espelhos?”. Coloquei os óculos escuros, e do alto dos meu metro e 65 e 63 quilos respondi “Sim. Não me sinto bem ao pé de ti.”
Nesse dia, soube, claramente, que a toxicidade daquela pessoa transbordava o seu próprio corpo, aspirava o ar circundante, condensava-se em seu redor. Nesse dia, não havia mais sorrisos para lhe dar. Não havia nada para oferecer.
Deste tipo de violência poucos falam. Poucos confessam. Poucos partilham. Suaviza-se, pinta-se de incentivo o bullying, maquilha-se o bodyshaming, escondem-se défices de caráter. O pouco tempo que vivi de perto esta realidade ensinou-me, da forma mais cruel, que a agressão estética pode começar em casa, nas mãos de quem gostamos, entre as paredes onde vivemos. E o que me fez sorrir, meus caros, perceber esta ilustre ironia: o bully, que pela minha vida passou, escreve agora sobre feminismo e racismo, sobre o bem e o mal, a tolerância social e cultural, na farsa dos dias com que se burla e aos outros.
Ao final do dia, um axioma único se impõe com uma premissa singular: não há amor sem amor-próprio. Não há amor no desamor. Não há amor onde o meu amor não cabe. Porque em amor, não se pedem larguras, não se exigem padrões, não se convencionam estereótipos. Um amor XL será sempre cego a todas as medidas.