Bullying é seguramente uma das palavras desta semana marcada por dois episódios distintos, mas em que ambos põem a descoberto a fragilidade de uns, perante o preconceito de outros, em relações de poder desproporcionais e desiguais.
O caso do atropelamento de um rapaz de 12 anos, no Seixal, ao tentar fugir de um grupo de sete colegas – situação mediatizada depois de um vídeo ter sido divulgado nas redes sociais –, já tem os seus intervenientes identificados pela polícia, todos alunos da Escola Básica Dr. António Augusto Louro, na Arrentela, e a participação seguiu para a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. O gozo, os insultos, uma perseguição insistente e um murro no ombro poderiam ter tido um final ainda mais trágico. No entanto, a situação traumática não se apagará depressa com uma borracha e seguramente vai deixar marcas nestes adolescentes. Aguarde-se pelo desfecho oficial do acontecimento.
De outra índole, e passado numa faixa etária mais velha, outro episódio foi denunciado nas redes sociais e também fez com que muitas pessoas se insurgissem contra o bullying, desta vez sexual e homofóbico. A meio da semana, o ator Manuel Moreira, protagonista da peça de teatro Avenida Q e apresentador do programa Freuda-se no canal Q, entre outros trabalhos, partilhou no seu Instagram um vídeo que recebeu – e não é o primeiro – em que alguns jovens juntos (sempre o mesmo grupo) o insultam com impropérios homofóbicos, num tom ordinário, de gozo e para muitos condenável. Uma publicação vista até agora mais de 340 mil vezes, em que os comentários se multiplicam em palavras como vergonha ou tristeza.
“Quem nunca fez parte de uma minoria qualquer tem dificuldade em fazer esse exercício de reflexão sobre o que é viver diariamente com medo de ser gozado, agredido e violentado física e psicologicamente apenas por se ser quem se é. Por se ser algo que, em certas idades, podemos até nós próprios não saber ainda identificar mas que já sabemos que por algum motivo absurdo desperta nos outros violência, gozo e desprezo”, começa por chamar a atenção o ator. E acrescenta: “Não conheço nem faço ideia quem são estes miúdos, mas se são crescidinhos para enviar repetidamente mensagens tão corajosas a desconhecidos (…), são crescidos também para ficarem aqui expostos como exemplo daquilo que não se deve ser nem fazer. Eu tenho quase 40 anos, sou adulto e independente e estou-me nas tintas para quantas vezes me chamam paneleiro. Tenho, felizmente, idade e condições psicológicas e sociais para que isto já me seja absolutamente indiferente. Aproprio-me de todas essas palavras que possam vir com a intenção de insultar e uso a minha bichice com orgulho.”
Uma questão de mentalidades
Este é o típico caso em que o bullying homofóbico – preconceito em relação à orientação sexual ou identidade de género de outra pessoa, quer seja homossexual, heterossexual, bissexual ou transsexual – aconteceu em quase todas as suas vertentes: sexual (insultar ou fazer comentários de natureza sexual), verbal (gozar, fazer comentários negativos ou críticas humilhantes), social (espalhar rumores, boatos ou comentários negativos ou humilhantes) e cyberbullying (espalhar informação falsa, assediar/perseguir, incomodar e/ou insultar através de SMS, MMS, e-mail, websites, chats, redes sociais). O ator Manuel Moreira teve o discernimento de ponderar os prós e os contras de fazer esta denúncia e, claramente, pesou mais o bem que o seu exemplo poderá dar a outras pessoas, homens ou mulheres, não interessa o género, que passem por situações semelhantes. Só faltou o bullying físico.
Criada há 12 anos por uma mãe que confrontada com a homossexualidade da filha procurou outros pais para falar sobre o assunto, a Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género, instituição particular de solidariedade social desde 2019, funciona em três vertentes. O apoio aos pais que procuram a associação quando tomam conhecimento da orientação sexual e ou a identidade de género dos filhos, partilhando e expondo dúvidas onde “ninguém julga ninguém, porque todos já foram o pai ou a mãe que chega pela primeira vez”. Na área da Educação são presença em palestras escolares e, em 2019, lançaram com o Instituto de Apoio à Criança guias para os profissionais de educação e para as famílias sobre diversidade de expressões de género na infância. A sua intervenção junto dos atores políticos também se tem feito ouvir, por exemplo, aquando da votação danova lei da identidade de género (2019), em que pela primeira vez foram ouvidos jovens trans na comissão. “Portugal está no bom caminho. Somos dos países com melhores leis, a mentalidade das pessoas é que não acompanha. Mas, é importante as leis existirem para que as pessoas possam usá-las para se defender”, argumenta Manuela Ferreira, 62 anos, diretora da Amplos.
Entretanto, já foi publicada em Diário da República a Lei n.º 27/2021, de 17 de maio, a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, em que estão previstos os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no ciberespaço. No Artigo 3.º, dedicado ao “Direito de acesso ao ambiente digital”, lê-se: “Todos, independentemente da ascendência, género, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, têm o direito de livre acesso à Internet.”
O Artigo 4.º, centrado na “Liberdade de expressão e criação em ambiente digital”, reforça: “Todos têm o direito de beneficiar de medidas públicas de promoção da utilização responsável do ciberespaço e de proteção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.”
‘Coming out’ forçado
Manuela Ferreira não tem dúvidas que o bullying pode ser um sinal de alerta tanto para a vítima, como para quem o pratica. “Os pais não podem ignorar. As próprias pessoas que praticam bullying também têm um problema. Mais do que castigar, os pais devem tentar perceber porque o fazem, qual a satisfação que têm em fazer sofrer o outro?”, alerta.
Quem sofre de bullying homofóbico é duplamente penalizado, pelo bullying em si, acrescido de, por vezes, ver-se forçado ao seu coming out em casa, falando de um assunto até então omitido. Outras vezes ainda pode acontecer o fechar-se em silêncio, sempre que são os próprios pais a duvidar da questão que espoletou o bullying. “Os pais devem estar preparados para estas situações. O silêncio é terrível, estes jovens carregam um silêncio forçado e que pode acabar em suicídio. Só na comunidade trans há 50% de taxa de suicídio a nível global”, salienta a diretora da Amplos.
São muitos os progenitores que se focam apenas na questão sexual, esquecendo a atração afetiva. “As pessoas homossexuais têm as mesmas paixões e os mesmos desgosto de amor como as outras.”
Nas escolas, os adultos têm de estar muito alertados também para estas situações, não pensando que “são só brincadeiras entre eles”. E os alunos não devem olhar para o lado quando assistem a uma situação, devem intervir, levar o tema para dentro da sala de aula e fazer a ponte com a família, para prevenir situações piores.
No passado dia 17 de maio, por ocasião do Dia Internacional Contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia, a UNESCO alertou para o facto de 54% das pessoas LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero, Queer, Intersexuais) terem sofrido bullying na escola pelo menos uma vez, devido à sua orientação sexual, identidade de género, expressão de género ou diferenças de características sexuais, segundo o inquérito da IGLYO (Organização Internacional de Jovens e Estudantes LGBTQI). O inquérito realizado a mais de 17 mil adolescentes e jovens entre os 13 e os 24 anos revelou também que 83% dos estudantes ouviu, pelo menos, algumas vezes, comentários negativos relativamente aos alunos LGBTQI e que 67% foram alvo desses comentários, pelo menos uma vez.
Situações espelhadas um pouco por todo o mundo. Nos EUA, 12,5% de estudantes lésbicas, gays e bissexuais indicaram não ter ido à escola nos 30 dias anteriores ao inquérito porque se sentiram inseguros no estabelecimento de ensino ou no caminho, comparativamente a menos de 4,6% de estudantes heterossexuais. Na Nova Zelândia, os estudantes LGBTQI estiveram três vezes mais sujeitos a agressões do que os colegas. No Japão, 68% das pessoas LGBTQI entre os 10 e os 35 anos tiveram experiências de violência na escola. Em sete países da América Latina, os estudantes LGBTQI identificaram pelo menos um professor ou funcionário da escola que os apoiou, mas a maioria dos alunos teve uma experiência negativa com atitudes de professores sobre a orientação sexual ou expressão de género.
Em novembro de 2020, os dados nacionais do Relatório do Projeto Educação LGBTI 2019, revelados pela rede Ex Aequo, apontavam que 79% dos jovens já assistiu a episódios de bullying homo-bi-transfóbico e 86% considera importante abordar aquelas questões na escola. Desses, 68% referiu que não são abordadas ou são raramente abordadas estas temáticas na aula e apenas 1% não atribui importância na abordagem de questões LGBTI em aula. Conclusões retiradas a partir das respostas de 1 070 jovens.
Há três anos, Raquel António, na altura a fazer um doutoramento em psicologia social no CIS-IUL – Centro de Investigação e de Intervenção Social do Instituto Universitário de Lisboa, juntamente com Rita Guerra e Carla Moleiro, realizou um estudo em que partiu da premissa de que o bullying é um fenómeno de grupo (mesmo quando protagonizado apenas por uma pessoa) para compreender o que impede os jovens de defenderem a vítima. Questionou 216 adolescentes de quatro escolas do distrito de Lisboa sobre o que fariam se vissem uma pessoa a insultar ou a agredir outra por supor que ela era gay ou lésbica e concluiu que tinham menos predisposição para ajudar vítimas de bullying homofóbico do que vítimas de outro tipo de bullying. Na verdade, o que os move é o medo de contágio social, ou seja, de serem vistos também como homossexuais. Só quando existe uma identidade comum, por exemplo, por serem todos estudantes da mesma escola, aumenta a intenção de ajudar a vítima. Uma conclusão retirada de outro estudo feito com outros 230 estudantes entre os 11 e os 19 anos.
Em casa, aos pais cabe a função primordial de ouvir e “parar de pensar que ao falarem destas questões estão a empurrar os filhos para serem homossexuais e trans. O mundo é mais diverso do que todas as pessoas pensam. A diversidade acrescenta-nos”, reforça Manuela Ferreira que tem esperança que, tal como os mais pequenos incentivaram os pais para a reciclagem, também com este assunto possam ser os mais novos a educar os pais.