Quarentenamos hoje?” A pergunta marota, na janela privada do ecrã, durante uma reunião online, é recebida com um sorriso maldisfarçado. A história pode ter começado no elevador, após o fecho de portas, num registo casual. “Deixas-me usar o teu álcool-gel?” Ou junto à máquina do café, ambos de máscara, enquanto um deles abre a lata de refrigerante e dispara, num tom provocador: “Hora do striptease!”
O tema da sedução no local de trabalho é suficientemente cativante para ser abordado em séries televisivas. “Porque continuamos a amar The Office?”, titula um recente artigo da New Yorker. A adaptação da série de comédia britânica (em Portugal, O Escritório) manteve os níveis de popularidade durante o primeiro confinamento, o que revela a importância que o local de trabalho tem nas nossas vidas, mesmo se nem tudo lá é perfeito.
Da ficção para a vida real, não faltam exemplos de duplas famosas que se conheceram na arena profissional: William Masters e Virginia Johnson, Angelina Jolie e Brad Pitt, Bill e Melinda Gates ou Barack e Michelle Obama. A componente lúdica das atividades de grupo no ambiente de trabalho faz dele um terreno fértil para as relações íntimas, tal como o meio académico abre portas ao ensaio de comportamentos e códigos de sedução. A tese é defendida no livro The Psychology of Work: Insights into Successful Working Practices, da psicóloga social Chantal Gautier: valores, crenças e interesses comuns promovem laços entre colaboradores. E agora? O trabalho remoto está a “matar” os flirts e os romances no escritório?
Quero, ou talvez não
Há seis anos, o site de empregos CareerBuilder inquiriu mais de três mil trabalhadores norte-americanos do setor privado sobre o tema e concluiu que 38% namoraram com alguém da empresa em que exerciam funções a tempo inteiro e que 16% o fizeram por mais de uma vez. Nos resultados do inquérito anual de 2018, foram 36%, a percentagem mais baixa da década (40% em 2008). Os romances no escritório deixaram de ser o que eram com o movimento #MeToo e o receio das consequências de admitir envolvimentos na esfera laboral.
No estudo, apurou-se que 31% dos namoros iniciados no trabalho resultaram em casamento, mas os que foram mantidos em segredo totalizaram 41% de respostas. Tal pode justificar-se pelo risco envolvido, já que 22% dos inquiridos admitiram uma ligação com a chefia – mais mulheres do que homens na posição hierárquica inferior – e quase um em cada quatro trabalhadores (24%) teve um “caso” com alguém comprometido. Nas ligações que deram para o torto, 6% deixaram o emprego (no feminino, foram 9%, o triplo dos homens).
Em agosto, um artigo do The Economist confirmava o movimento descendente do que se pode apelidar de brincadeiras sérias, baseando-se num estudo da Universidade de Stanford: pessoas que conheceram os parceiros no trabalho eram 19% em 1995, mas não foram além dos 11% em 2017. A “culpa” seria do aumento do teletrabalho e das políticas empresariais, que desencorajavam os relacionamentos entre colaboradores, a pensar em eventuais conflitos de interesses ou abusos de poder.
“Os relacionamentos mais íntimos exportaram-se para o online, que se revelou um espaço acrescido para iniciar novas ligações”, observa a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva. Simultaneamente, “houve pessoas que se sentiram isoladas numa bolha, agarradas ao teletrabalho e às tarefas domésticas, com prejuízo da partilha informal em que podiam ‘deitar conversa fora’ à hora do café”.
Não admira que tenham aumentado a motivação e a disponibilidade para aceitar conversas com desconhecidos, em redes sociais e apps, com ou sem o intuito de flirts, “reinventando comportamentos na esfera virtual, na tentativa de reduzir a ansiedade e colmatar a falta de conexão”. Durante o desconfinamento, chegaram-lhe ao consultório relatos de desconforto e estranheza: “Após meses de desligamento, sentiram que as relações se quebraram.” No sentido oposto, “houve pessoas a adiar o regresso por terem construído um estilo de vida em que sentiam ser mais donas do seu tempo”.
Apesar disso, as virtudes do registo presencial continuam a ser uma prioridade, como parecem sugerir os resultados do inquérito do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica Portuguesa para o Público e RTP: dos 1 315 inquiridos, a maioria (82%) disse exercer funções no local de trabalho no segundo pico da pandemia (eram 32% em abril).
O novo “user friendly”
Mesmo quem tira partido do trabalho a partir de casa sente falta da socialização. “Há uma saudade desse encontro que se tenta manter através de eventos semelhantes aos presenciais”, elucida Teresa Froes, gestora de marketing da consultora Michael Page. E exemplifica: “Nos coffee breaks, via Teams, partilham-se experiências profissionais e conversas de circunstância, como faríamos na copa, mas sem a dimensão calorosa da presença física.”
Sobre casos de proximidade mais íntima de que teve conhecimento ao longo da carreira, “uma das partes opta por sair ou mudar de piso, fica ao critério de cada um”. No novo pico da pandemia, mantém-se a procura por espaços de trabalho partilhados. “O conceito de ‘Flex Office’ permite aceder a salas privadas para videoconferência com melhores condições do que em casa”, nota Carlos Gonçalves, que dirige o Ávila Spaces – Escritórios e Coworking Lisboa. O ambiente colaborativo e as regras de segurança atraem empresários que perderam clientes e profissionais liberais em transição de carreira: “Fazem networking e conhecem novas pessoas.” Sobre os implícitos da comunicação que dão sal à vida, “não é algo percetível”, mas é do senso comum que, “quando saímos de casa, tudo pode acontecer”.
“Na transição para o digital, perde-se a camaradagem, essencial para a melhoria do clima da organização”, assegura Maurício Korbivcher, CEO da Great Place to Work em Portugal. “O escritório tende a ser um ponto de encontro e não apenas o local onde se cumprem tarefas que podem ser feitas noutro sítio”, acrescenta. O desafio consiste em equilibrar o social e o profissional, já que “a confraternização é o que motiva os colaboradores e mantém equipas”.
Uma lógica que coloca o escritório ao nível das “sala de espetáculos, com ou sem happy hours”, em vez do espaço com áreas de lazer para pausas laborais. “Até quem não gosta de passar o dia com colegas de trabalho precisa de relacionar-se e de ter alguém com quem falar e a quem ouvir.” Daí que faça sentido repensar o fator relacional nas empresas.
Não é por acaso. “O home office 100% virtual é mais pobre para a criação de vínculos”, observa o psicólogo organizacional e psicoterapeuta Jaime Ferreira da Silva. Com décadas de experiência enquanto consultor, o managing partner da Dave Morgan reconhece que “precisamos do toque no ombro, da perceção de identidade e pertença, do contacto dos corpos em atividades de grupo”. Sobretudo agora: “As pessoas sentem-se “bored out” (tédio ou saturação dos ecrãs), carentes da ativação da oxitocina, hormona associada aos vínculos (sexual, familiar, do clã). Está nos nossos genes.”
Voltando aos encontros românticos, “a criatividade humana vai continuar a funcionar, apesar dos condicionamentos temporários”. E remata: “Estou convencido de que o flirt acabará por passar do ecrã para o registo presencial, ao vivo e a cores.”
Companheiros? Sim, mas…
O que ter em mente antes de envolver-se com alguém no local de trabalho
Regras da casa
Passar do plano profissional para o pessoal sem conhecer o código de conduta da empresa, mesmo que este não esteja no papel, é arriscado. Aqui vale a máxima “informação é poder”
Prudência
Entre o flirt e o compromisso há uma série de opções que merecem ser ponderadas em termos de custo-benefício, porque se o romance for assumido e não correr bem, um ou ambos podem sair perdedores na arena profissional
Separar as águas
Uma regra valiosa até mesmo para duplas famosas que vivem e trabalham em parceria. Em caso de divergências em qualquer destas áreas, há que manter a cabeça fria e não envolver os colegas de trabalho
Etiqueta virtual
Atente ao que publica, partilha e comenta nas plataformas internas e nas redes sociais, que podem resultar numa exposição indesejada e ter implicações que não controla, sobretudo se o relacionamento ainda não tiver pernas para andar
Fonte: CareerBuilder