Era uma vez um príncipe do Leste europeu, mas aparentado com a realeza portuguesa, que, antes de se tornar rei Carlos II, em vez de se casar com uma qualquer princesa das redondezas, escolheu desafiar os cânones e desposar uma plebeia. Não só não viveram felizes para sempre como começou aí uma daquelas confusões bem grandes, que ainda hoje está por resolver e para a qual os tribunais portugueses têm contribuído fortemente ao longo de décadas, impedindo que uma família encontre a harmonia. Assim se poderia narrar a história dos últimos 100 anos da família real romena, que, mais uma vez, acaba de recorrer à Justiça em Lisboa, reabrindo o infindável inventário de uma herança. Tudo para solucionar os seus profundos diferendos, alimentados pela disputa por títulos e propriedades.
Eis o mais recente capítulo deste enredo: com um mandado de captura internacional emitido por Bucareste contra si, para o cumprimento de quase três anos e meio de prisão pela prática de vários crimes de colarinho branco, Paulo Filipe da Roménia mostrou-se mais rápido do que as autoridades locais e pôs-se a salto há três meses. Acabou por ser a mulher, a norte-americana Lia Triff, a revelar sem pruridos às televisões, numa noite de vésperas de Natal, que o marido tinha rumado a Portugal.
Paulo viu o Supremo Tribunal romeno confirmar a condenação a três anos e quatro meses de pena efetiva por abuso de poder, lavagem de dinheiro e corrupção. Ainda que o príncipe romeno tenha sido considerado o mentor do plano, que passou pela apropriação dos bens das cinco primas princesas e do Estado, o veredito final, que não é passível de recurso e diz respeito a crimes cometidos entre 2006 e 2013, foi mais pesado para outros réus. Entre eles contam-se o empresário Remus Truica, antigo assessor do primeiro-ministro socialista Adrian Nastase, outros dois grandes investidores israelitas do imobiliário e ainda um jornalista.
Princesa confiscada
O caso conhecido por “Fazenda Baneasa” consistiu na apropriação indevida por Paulo de diversas propriedades que pertenceram ao seu avô, o rei Carlos II, que morreu no Estoril, em 1953. Apesar de ser a sua prima Margarida da Roménia a cabeça da Casa Real − sucedida pelas quatro irmãs −, e por isso a gestora de grande parte dos bens, e o Estado também deter parte do espólio do antigo monarca, devido a processos de nacionalização durante o regime comunista, Paulo vendeu aos empresários condenados os seus alegados direitos sobre aquela fortuna. Chegou ao ponto de alienar o simbólico Castelo de Peles, que o poder político devolveu há um par de anos a Margarida, levando a que a atual herdeira do trono fosse vítima de uma ação de confisco pelo grupo.
O gesto de Paulo teve ao longo dos anos semelhantes réplicas, ainda que menos graves. Como aquela, em 2007, quando, com o meio-irmão, Ion, tentou tirar do Banco Nacional da Roménia 15 quilos de joias e metais preciosos, arrancados pelo antigo regime a Carlos II e aos irmãos Isabel e Nicolau.
Assim que Lia Triff sinalizou o paradeiro do marido, a VISÃO questionou a Unidade de Cooperação Internacional da Polícia Judiciária (PJ), não tendo obtido qualquer resposta até hoje. Já a congénere romena da PJ optou por divulgar o mandado internacional que remeteu à Interpol. Na embaixada da Roménia, admite-se que possa estar por cá, mas desconhece-se o seu paradeiro. Porém, Paulo aterrou em Lisboa já em outubro de 2020. Um dos locais onde esteve foi no Palácio da Justiça, acompanhado por um tradutor, onde avançou com um pedido de reabertura do inventário de bens do avô, aos quais juntou o leque de propriedades de que já se tentou apropriar em Bucareste, apurou a VISÃO. Mas já lá vamos.
Relações censuradas
Afinal, quem é Paulo Filipe da Roménia? É um dos dois filhos de Carlos Lambrino, que, só aos 35 anos, conseguiu ser legitimado como descendente direto do rei Carlos II pela Justiça portuguesa. Ainda o monarca era um jovem príncipe quando caiu de amores pela romena Zizi Lambrino, filha de um militar. Como a Constituição do país impedia o casamento de homens da família real com mulheres romenas, Carlos II rumou à Ucrânia para se casar com aquela plebeia, em 1918. A união foi considerada inconstitucional e dissolvida. Zizi foi exilada com o filho, Carlos, em Paris, passando a receber uma pensão mensal do Estado para manter a distância.
O rei Fernando I arranjou então uma nora à altura dos deveres do filho: Helena da Grécia. Com ela, Carlos II teve Miguel I, em 1921, para logo depois cair de amores por Helena Lupescu, uma judia austríaca. A relação com a amante tornou-se tão notória que teve de abdicar da coroa para o filho Miguel, que, com a morte do avô, se tornou rei ainda criança. Helena da Grécia foi exilada e afastada do filho. Carlos II dedicou-se à sua nova companheira, Helena Lupescu, fora do país, ao qual regressou em 1930 para retomar a coroa − que manteve nos dez anos seguintes.
Nesse período, conheceu Ernest Urdareanu, um militar que começou por ser seu assessor e acabou como ministro, com alto poder sobre o monarca e, mais concretamente, sobre Helena Lupescu. Seria ainda uma espécie de testa de ferro dos diversos investimentos do rei. “A madame Lupescu controla o rei, mas eu controlo a madame Lupescu. Na prática, controlo a Roménia”, gabar-se-ia.
Parte da herança foi parar a marechal suspeito de ter sido um testa de ferro de Carlos II
Quando Carlos II é obrigado a abdicar, devido à gestão errática e sob suspeitas de corrupção, Urdareanu acompanhou-o no exílio. A partida da Roménia ficou marcada pelo maior número de bens que o monarca conseguiu levar consigo. Rumaram à Suíça, depois a Espanha, onde lhe terá sido confiscada parte dos seus bens, e, em 1941, adquiriu a Villa Marysol, no Estoril (no inventário do Tribunal de Cascais, surge como Mar e Sol). Não fixou logo residência em Portugal, já que ainda andou pelas Américas, onde o fiel assistente se casou com Monique, de 18 anos. Urdareanu tinha mais 30 anos do que a noiva.
Regressaram os quatro ao Estoril, algures em 1949. Os Urdareanu passaram a viver perto do rei, na Villa Flore. Na Marysol, Carlos II construiu uma caixa-forte no seu quarto, onde guardava as joias e uma coleção de filatelia (retenha-se este pormenor). Em abril de 1953, o monarca morre por insuficiência cardíaca, aos 59 anos, de acordo com o relatório consultado pela VISÃO.
É aí que Carlos Lambrino, então com 33 anos, filho excluído de Zizi, aterra em Portugal e avança com uma ação judicial para reconhecimento da filiação, fazendo parar a divisão dos bens de Carlos II, entretanto inventariados. A Justiça portuguesa levou dois anos para decidir, tendo legitimado tais pretensões, em 1955. Lambrino vê depois as justiças francesa e britânica reconhecerem tal decisão nos anos seguintes. Na Roménia, já só no princípio deste século é que o conseguiu, apesar da enorme contestação do meio-irmão, Miguel I.
Dívidas na morte
Até 1977, quando morreu, Helena Lupescu manteve-se como cabeça de casal de uma herança que se arrastou anos pelos tribunais. A terceira mulher de Carlos II reportou por diversas vezes aos autos, consultados pela VISÃO no Palácio da Justiça, o incómodo que era o facto de não poder aceder a certas contas do marido no estrangeiro, principalmente na Alemanha, perante a falta de uma divisão clara dos bens.
O tempo que levou para deslaçar o nó que Carlos Lambrino, Miguel I e a princesa Helena Lupescu impuseram às partilhas, entre 1953 e 1971, permitiu que o inventário revele hoje, além dos bens que possuía, a forma como vivia Carlos II. Apesar de muitas participações em empresas estrangeiras e das dezenas de contas bancárias cá e lá fora, nenhum montante milionário salta à vista. O maior depósito estava na CGD: 251 contos, cerca de 100 mil euros aos valores atuais, segundo o conversor temporal da Pordata. Nesse período, os três herdeiros, apoiados pela fina nata da advocacia nacional, foram extraindo alguns dos bens.
Numa das petições, Helena Lupescu lamentou que Lambrino a tratasse por “Magda” nas contestações que fez chegar ao tribunal. Aquele nome era a forma como, nos anos de 1920, eram denominadas as prostitutas aposentadas em Bucareste. A verdade é que muitos documentos e sites dão hoje como adquirido que a judia austríaca se chamava assim.
Outra das coisas que mais saltam à vista é o volume de dívidas que o rei tinha à data da morte. Urdareanu reivindicou dezenas de contos entregues ao monarca nos meses de fevereiro e março de 1953, antes da morte. Um sinal de que era o militar que sustentaria o monarca? O mesmo pediu ao inventário que lhe fossem pagos seis contos (2 500 euros aos dias de hoje), pela contratação do serralheiro a quem coube rebentar com o tal cofre que Carlos II tinha no quarto, 15 contos pela descarga de um Cadillac no porto em Alcântara e ainda as despesas do funeral, que conduziu o corpo para o Panteão de São Vicente.
De uma forma ou de outra, a herança foi sendo esvaziada − e até se chega a reportar que uns bens foram “entretanto roubados da Marysol”. Com a morte de Helena Lupescu, o casal Urdareanu tornou-se herdeiro. Ernest e Monique serão ainda quem, em 1985, receberá autorização do tribunal para abrir os sete pacotes das memórias de Carlos II, que estiveram selados 25 anos na Torre do Tombo (o inventário não sinaliza qual era o conteúdo). Àquela data, a República Socialista da Roménia também exigiu ser beneficiária da herança, tendo a embaixada tomado conta de vários bens, de carpetes a quadros, que os Urdareanu não quiseram.
Ora, é este inventário que Paulo da Roménia veio agora reabrir sozinho, a 6 de outubro de 2020, já que o meio-irmão Ion fez saber aos Juízos Cíveis de Lisboa que não quer entrar nesta disputa. A 21 de dezembro, Paulo forneceu um elenco de 164 bens − dos quais 99 são pinturas − que terão pertencido ao avô, dispersos por aquele país da Europa do Leste e pelo mundo. Saltam à vista as residências oficiais das primas, recheios de museus nacionais da Roménia e até 26 veículos com cerca de 90 anos.
Por Bucareste, permanece a mulher, Lia, de 72 anos, a qual uma reportagem do New York Times, de 2002, classificou como a mentora das investidas do príncipe romeno contra o ramo oficial da Casa Real. A norte-americana é a mesma que, há dez anos, teve um bebé in vitro: Fernando, o filho de ambos. É dela a explicação para um recurso que Paulo interpôs na Relação de Bucareste, já em meados de janeiro, após ter sido recusada em primeira instância uma queixa crime contra Margarida da Roménia e Adrian Vasiliu, o advogado da Casa Real e representante do rei Miguel, desde 1998. “Estas pessoas são extremamente gananciosas, porque roubaram a herança do meu marido e tentam impedi-lo de aceder à herança de seu avô”, disse Lia à Roménia TV.
Tal como em 1955, há um mês e meio abriu-se um novo precedente nesta disputa familiar. A Justiça portuguesa reconheceu como cabeça de casal desta nova alegada herança Paulo, que, aos 72 anos, é procurado pela Interpol. A VISÃO contactou o gabinete de Margarida da Roménia, que não reagiu a este gesto do primo, que pode tornar-se tão disruptivo como o alcançado por Carlos Lambrino.
Exílio problemático
Carlos II foi um quebra-cabeças para Salazar, já que era procurado pelos alemães e havia grande probabilidade de reivindicar a coroa portuguesa, como tetraneto da rainha D. Maria II. Já após a II Guerra Mundial, os EUA fizeram de tudo para que Carlos II se mantivesse por cá. Num telegrama enviado por Washington à embaixada norte-americana em Lisboa, a 22 de outubro de 1947, teme-se que Helena Lupescu e Urdareanu possam convencer o monarca exilado a regressar a Bucareste, tal como o regime comunista pretendia. “Pedimos que sejam tomadas todas as medidas possíveis para evitar que Carlos saia de Portugal”, lê-se no documento disponibilizado pelo site oficial da história da diplomacia americana.