A vida de Kathleen Folbigg foi marcada por tragédias desde cedo. Nascida em 1967, na Austrália, o seu pai esfaqueou vinte e quatro vezes a sua mãe, assassinando-a quando Folbigg tinha apenas dois anos. Veio a ser criada numa casa de acolhimento e, mais tarde, casou-se com Craig Folbig, com quem teve quatro filhos – Caleb, Patrick, Sarah e Laura. Mas, para piorar a vida já trágica de Kathleen, todos os filhos do casal morreram muito cedo. Caleb morreu em 1989, com apenas 19 dias; Patrick morreu em 1991, com oito meses; Sarah em 1993, com 10 meses; Laura em 1999, com um ano e meio. Na época, duas destas mortes foram associadas a morte súbita infantil, uma a ataque epilético e a outra não foi determinada.
No entanto, a história da morte dos filhos do casal não ficou por aqui. Assombrado pela morte prematura de todos os seus filhos, Craig veio a descobrir, em 2003, um diário da mulher com revelações que considerou suspeitas. Por isso, denunciou Kathleen às autoridades. Bastou pouco tempo para o “homicídio dos quatro filhos” se tornar num dos casos mais mediáticos dos tabloides australianos, com Folbigg a ser considerada “a mulher mais odiada da Austrália.” Assim, nesse mesmo ano, veio a ser condenada pelo homicídio por sufocamento dos seus quatro filhos, com uma pena de prisão de 30 anos.
Folbigg foi condenada principalmente com base no que tinha escrito no seu diário. Numa das entradas, quando estava grávida da terceira filha Laura, lia-se: “Mais um ano passou e outro está por vir. Tenho um bebé no caminho, o que significará grandes sacrifícios para os dois, mas estou confiante que tudo vai correr bem. Desta vez vou pedir ajuda, não vou tentar fazer tudo por mim própria. Eu sei que isso foi a principal razão para o meu stress do passado, que me levou a fazer coisas terríveis…”; noutra entrada, Folbigg escrevia “sinto-me a pior mãe do mundo. Tenho medo de que ela me abandone, tal como a Sarah. Eu sei que tinha mau feitio e era cruel para ela às vezes, e ela foi-se embora. Com um pouco de ajuda…”
A mulher australiana sempre defendeu que os excertos do seu diário tinham sido retirados de contexto – no caso da entrada final, na qual afirmou que a filha tinha morrido “com um pouco de ajuda”, Folbigg clarificou que se referia à ajuda de “um ser superior, como Deus”, e não a si própria. Na altura, os seus argumentos não convenceram o tribunal. Até que, passados quase 18 anos, um grupo de 90 cientistas juntou-se para defender a inocência de Kathleen Folbigg com base em provas científicas. Depois de vários anos “adormecido”, o famoso caso voltou à discussão nacional (e internacional).
“Não absolver Folbigg é negar-lhe direitos humanos básicos”, dizem os cientistas
O grupo de 90 cientistas, que inclui Peter Doherty e Elizabeth Blackburn, ambos galardoados com o Nobel da Medicina, assim como Fiona Stanley, epidemiologista australiana que venceu o prémio “Australiana do Ano” em 2003, assinou uma petição que apela a Margaret Beazley, Governadora da Nova Gales do Sul, para “para impedir o erro judiciário em curso sofrido por Kathleen Folbigg.” Segundo o grupo, “o caso de Folbigg estabelece um precedente perigoso, uma vez que significa que provas médicas e científicas podem simplesmente ser ignoradas face a interpretações subjetivas de provas circunstanciais.”
Em causa está o facto de, recentemente, terem sido revelados novos relatórios médicos que demonstram que duas das filhas de Folbigg, Sarah e Laura, provavelmente morreram de causas naturais. “Nós escrevemos esta petição para chamar atenção a estas novas provas científicas”, disse Rhanee Rego, ex-advogada de Folbigg. “Estes são alguns dos cientistas e médicos mais inteligentes e reconhecidos do mundo, não apenas da Austrália, e eles estão convencidos com estas novas provas”, acrescentou.
A petição do grupo de cientistas surgiu após ser realizado o sequenciamento genético do ADN de Sarah e Laura, obtido a partir dos seus “testes do pézinho”, que revelou que ambas herdaram uma mutação genética da sua mãe chamada CALM2. Segundo Rhanee Rego, a literatura científica indica que as mutações do gene CALM2 podem causar morte cardíaca súbita: “é uma das causas mais reconhecidas de morte súbita, tanto acordado como durante o sono, em crianças e adultos”, disse a própria à ABC. “Caso seja ativada por infeções intercorrentes, ou por remédios como pseudoefedrina, pode resultar numa arritmia cardíaca”, explicou a advogada.
Assim, esta foi a explicação médica que o grupo de cientistas encontrou para acreditar na inocência de Folbigg. Por outro lado, Rhanee Rego acrescentou que novas pesquisas têm indicado que os outros dois filhos da mulher, Patrick e Caleb, também podiam ter diferentes mutações genéticas que contribuíram para as suas mortes. “Temos uma causa natural de morte para cada uma das crianças”, afirmou – a variante CALM2 no caso de Sarah e Laura, e as outras possíveis mutações de Patrick e Caleb.
Agora, a decisão de perdoar Folbigg está apenas nas mãos da Governadora do Estado de da Nova Gales do Sul. No entanto, mesmo que Margaret Beazley a perdoe, a sentença de Folbigg não é automaticamente anulada, uma vez que a mulher ainda terá de apresentar um recurso da decisão original do tribunal. Ainda assim, o cenário podia ser mais sombrio: caso ainda existisse pena de morte na Austrália – abolida em 1985 neste Estado – Folbigg poderia já nem estar viva para se poder defender deste veredicto potencialmente errado.