Depois de uma viagem de 480 milhões de quilómetros, o robot Perseverance, da missão da NASA, aterrou na superfície de Marte no dia 18 de fevereiro. De forma a compreender esta nova missão em Marte e a desvendar alguns mistérios sobre as visitas ao planeta vermelho – como a possibilidade de existência de vida extraterrestre – a VISÃO conversou com Zita Martins, astrobióloga portuguesa. A professora associada no Instituto Superior e co-diretora nacional do Programa Científico-tecnológico MIT Portugal, que já trabalhou na própria NASA, explicou que esta é uma missão feita “para o futuro” e acredita que, mais tarde ou mais cedo, haverá missões tripuladas a Marte.
O Perseverance é o quinto rover a pisar Marte. Pelas imagens, estes diferentes rovers aparentam ser bastante parecidos em termos de dimensões, com uma estrutura semelhante. O que é que este rover traz de novo quando comparado aos seus antecessores, como a Curiosity, e quais são os seus objetivos?
Há uma grande razão para o design do Perserverance ser baseado no design da missão anterior da NASA, a Curiosity: gasta-se menos dinheiro. Nestas missões, que são financiadas pelos governos dos países, os cientistas têm de justificar o dinheiro aos contribuintes – logo, é essencial poupá-lo. Esta é uma missão virada para o futuro. Diria que o Perseverance é um passo intermédio entre tudo o que já aprendemos até agora e o que queremos aprender no futuro. Assim, a missão da NASA tem diferentes objetivos: estudar as condições de habitabilidade em Marte; detetar a existência de determinadas moléculas orgânicas, que servirão para verificar se há ou houve vida no planeta; recolher amostras e colocá-las em “frasquinhos” para analisá-las; e, por fim, preparar futuras missões humanas a Marte.
O que são estas “condições de habitabilidade” em Marte?
É importante esclarecer que habitabilidade não é vida, mas sim as condições necessárias para a existência de vida. Para existir habitalidade, são necessários três fatores: água em forma líquida, uma fonte de energia – neste caso, o Sol – e nutrientes, como minerais. O facto de existirem condições de habitabilidade não significa necessariamente que a vida existe. Neste momento, nós sabemos que, pelo menos no passado, Marte tinha as condições ideias para a vida se desenvolver.
E em que se ligam estas condições de habitalidade ao local de aterragem escolhido para o rover?
Houve vários locais de aterragem em discussão entre os cientistas, tendo acabado por se atingir um consenso que este era o melhor local pelas condições de habitabilidade verificadas na cratera Jezero – trata-se de um local onde o Perseverance vai poder estudar um delta [foz] de um rio, um sítio ideal para este tipo de pesquisa. Já não há nenhum rio ali, mas trata-se de um sinal de que em tempos ele existiu, o que indica que havia muita água líquida em Marte no passado. Por outro lado, a comunidade científica vai também tentar verificar que minerais existem naquela zona, escolhida também por ter muitas argilas. As argilas retêm água nas suas camadas e protegem moléculas orgânicas da radiação que chega à superfície de Marte, o que nos leva ao segundo objetivo desta missão: procurar sinais de vida.
E que tipo de sinais de vida seriam estes?
Eu sublinho sempre que não estamos à procura de “homenzinhos verdes” nestas missões. Quando se diz que uma missão espacial vai à procura de vida, trata-se de microorganismos. A comunidade científica não faz esta pesquisa de forma direta, mas sim a partir de vestígios de sinais de vida: procura estas assinaturas a partir de moléculas orgânicas, que compõe as células, ou seja, que são sinais de formação da unidade básica da vida. No entanto, estas moléculas em si não são vida, mas sim química pura. O papel que eu tenho feito nestes quase 20 anos é precisamente tentar distinguir entre as moléculas orgânicas que podem ser “impressões digitais” de vida, das outras que não o sejam, que são simples moléculas.
Quais são alguns dos instrumentos mais importantes do Perseverance para cumprir estes seus objetivos?
Para detetar sinais de vida, o rover conta com um espectrómetro, o “SHERLOC”, que vai medir a radiação, acompanhado por uma câmara, o “Watson” – um toque de humor dos cientistas da missão. Esta câmara servirá para tentar visualizar os minerais de Marte, enquanto que o “SHERLOC” conseguirá identificar que tipo de minerais e moléculas orgânicas se tratam. Por sua vez, há outro equipamento que vai analisar a sub-superfície de Marte e verificar se há água, gelo ou salmouras até 10 metros de profundidade. Trata-se de uma novidade: tudo o que foi feito até agora neste campo não foi com rovers, que permitem uma análise mais aprofundada. Outro equipamento, o MOXIE, vai gerar oxigénio a partir do dióxido de carbono da atmosfera de Marte, que é rarefeita e tem muito CO2 – o MOXIE funciona um pouco como uma árvore na Terra, que converte o CO2 em oxigénio. Este oxigénio serviria para, no futuro, levar os astronautas a Marte e permitir o seu regresso – é necessário ter oxigénio líquido para tal.
Em termos de astrobiologia, não considero que esta se trate da missão mais desenvolvida que alguma vez vamos ter, penso que no futuro vamos ter missões com tecnologia ainda mais avançada. Mas esta é, como disse, uma missão feita a pensar no futuro: os cientistas já estão a pensar em missões tripuladas para daqui a algumas décadas.
É realista pensar nestas viagens tripuladas a Marte, com astronautas, num curto espaço de tempo?
O “curto espaço de tempo” é visto de forma diferente entre os cientistas e os não cientistas. Para mim, é normal planear o meu trabalho a 10 ou 15 anos. Para o comum dos mortais, talvez não. Estamos a falar de escalas de tempo diferentes – na ciência fala-se sempre em décadas, nunca dias nem meses. Com isto, levar humanos a Marte não é ficção científica, vai acontecer. No entanto, temos de ser realistas. Eu duvido que isso aconteça nos próximos 10 anos, por duas razões diferentes.
Em primeiro lugar, temos a questão da proteção planetária. Todos os países do mundo pertencem ao Comité para a Investigação Espacial (COSPAR), que dita que não podemos contaminar outros corpos celestes e que nas missões espaciais temos de ter cuidado com a forma como trazemos as amostras. Neste momento, a primeira prioridade da comunidade científica internacional é determinar se existe ou existiu vida em Marte e, para isso, temos de assegurar que não contaminamos o planeta ao levar para lá micro-organismos – só depois é que pensamos em levar humanos.
Em segundo lugar, existe um lado ético e social neste processo, uma vez que a vida é um bem precioso. Nestas missões, temos que ter a certeza de que, quando levamos um astronauta a qualquer sítio, ele vai e volta. Neste momento, sabemos que conseguimos levar astronautas à Lua ou à Estação Espacial Internacional (EEI), mas não temos as mesmas garantias com Marte, por várias razões: tecnologia, escalas do espaço e as próprias condições nefastas para a saúde. Temos astronautas que vivem durante meses ou anos na EEI e os efeitos na sua saúde estão a ser estudados, mas a amostra ainda é muito pequena.
Quais são os impactos na saúde dos astronautas que têm verificado, até agora?
Há efeitos na perda de densidade óssea, por exemplo, ou de densidade muscular – por isso é que os astronautas fazem tanto exercício, para tentar atrasar esta perda. Por outro lado, uma vez que o espaço tem condições de microgravidade, todos os fluídos do corpo sobem e há uma grande pressão ocular. Também o coração funciona de forma diferente quando a gravidade se altera, uma vez que não há tanta pressão, originando problemas cardiovasculares. Por sua vez, a pele tende a envelhecer, uma vez que no espaço não há camada de ozono para nos proteger, o que implica uma série de riscos, incluindo cancro. Daí a importância de todos estes estudos para planear futuras viagens – não podemos enviar humanos para Marte sem conhecer antes os impactos na sua saúde, é uma questão ética.
O próprio tempo que leva a viagem até Marte também deve levantar problemas…
Sim, são cerca de nove meses – e esse só o tempo de ir. A juntar-se ao tempo da missão em Marte, mais o tempo de regresso, estamos a falar de anos de missão. Realisticamente, é um preço muito alto a pagar.
E a possibilidade de enviar civis – a “colonização de Marte”, como Elon Musk disse – para Marte é equacionada por estas agências espaciais?
Realisticamente, não acredito que o “turismo espacial” aconteça ainda nas nossas vidas. Neste momento, as várias nações que participam neste xadrez da “corrida espacial” – a Europa, com a Agência Espacial Europeia, os EUA, com a NASA, a China, os Emirados Árabes Unidos, ou a Índia – estão a fazer esforços para serem os primeiros a enviar astronautas para Marte – mas apenas astronautas, por enquanto. Trata-se de uma questão de orgulho nacional.
Nesse caso, vivemos hoje uma nova corrida ao espaço?
Sim. No último mês, houve três missões espaciais diferentes – da NASA, da China e dos Emirados Árabes Unidos – e nós acabamos por ouvir muito apenas da NASA na comunicação social. Os cientistas são excelentes, mas obviamente que há uma grande campanha de marketing envolvida. Apesar de todos estes países terem maneiras diferentes de trabalhar, não havendo uma maneira de compará-los diretamente entre si, posso verificar que está a haver um enorme investimento na China em laboratórios de investigação, em áreas como a astrobiologia e a cosmo química, com a contratação de cientistas de todo o mundo. Por isso, não ficaria surpreendida se a China fosse a primeira a conseguir enviar um astronauta para Marte.
E esta corrida ao espaço resume-se à missão de levar um astronauta a Marte?
Marte é algo de novo. Para além de as pessoas quererem deixar um cunho na história de algo que nunca foi feito, a ideia de “aterrar em Marte” também é mais excitante para o público que outras descobertas científicas – mas não é a única missão em vista, há muitas outras. Tanto a NASA como a Agência Espacial Europeia estão a planear, ao longo da próxima década, realizar missões espaciais em algumas das luas geladas de Júpiter e Saturno, nomeadamente a Lua Europa e a Lua Encélado. Por outro lado, a Agência Espacial Europeia tem uma missão chamada Comet Interceptor, da qual eu faço parte, e vamos tentar analisar um cometa que nunca entrou no interior do nosso sistema solar – o que irá complementar outras missões já realizadas pela NASA. Outra missão em que estou inserira, a Hayabusa2, do Japão, trouxe de volta amostras de um asteroide recentemente. Nas nossas reuniões, contamos com cientistas de todo o mundo, desde o Japão aos EUA, onde é partilhada informação e se trocam impressões sobre as descobertas. Tudo isto demonstra que as equipas de cientistas nunca trabalham realmente isoladas.Marte é a corrida principal, mas há muitas outras a decorrer.
E qual é a representação de Portugal nestas missões espaciais?
Desde os últimos anos que já temos uma comunidade científica com quantidade e, acima de tudo, qualidade. Temos várias pessoas que estão a trabalhar em diferentes missões espaciais, como eu, o Pedro Machado, representante nacional da missão espacial Ariel, que vai estudar a atmosfera de exoplanetas, o Nuno Santos, líder internacional nesta área, e por aí adiante. O problema nunca foi falta de “massa cinzenta.” Neste momento, o importante era reunir toda a comunidade portuguesa desta área que está pelo mundo e ter um reconhecimento – para isso, surgiu a Portugal Space, a Agência Espacial Portuguesa. Estamos a dar cartas e todos devíamos ter muito orgulho nos nossos cientistas, que ao longo dos anos se têm destacado em várias missões espaciais. Este é um trabalho importantíssimo para Portugal, que deve estar envolvido nestes estudos não só com cientistas, mas também com empresas. E devemos, claro, inspirar a próxima geração que vem para esta área.