No verão do ano passado, Mwazulu Diyabanza e outros ativistas entraram no Museu do Quai Branly, em Paris, que alberga mais de 90 mil objetos da África subsariana. Enquanto gritavam “vamos levá-la para casa!”, arrancaram do seu local de disposição uma peça africana do século XIX pertencente ao povo Bari, do Chade. A polícia recuperou o objeto e prendeu Diyabanza durante três dias. Mais tarde, um juiz multou-o em mil euros por “tentativa de roubo.” Ainda assim, o ativista africano não desistiu da sua demanda: um mês mais tarde, em Marselha, Diyabanza tentou retirar uma lança de marfim do Museu de Arte Africana da cidade. Foi novamente a tribunal, onde o deixaram sair sem qualquer sanção. Já no outono, Diyabanza foi até à Holanda para tentar remover uma estátua do Congo, no Museu de África de Berg en Dal. Desta vez, recebeu uma pena suspensa de dois meses e uma multa de 250 euros.
A “missão” de Diyabanza já dura há muito. Quando tinha apenas 12 anos, a sua mãe contou-lhe como os homens de Portugal e da Holanda invadiram a aldeia do seu trisavô, governador do rei no antigo Zaire, atual República Democrática do Congo, no século XIX. Segundo a sua mãe, quando os europeus entraram na aldeia, tiraram as pulseiras dos braços do seu trisavô, roubaram o seu cetro cerimonial e o couro de um leopardo oferecido pelo próprio rei. Foi a partir desse dia que Diyabanza se apercebeu que queria trazer de volta os artefactos pertencentes aos seus antepassados, levados pelas forças coloniais do passado.
A luta pela restituição do património africano nos museus europeus não é nova. Para além dos 90 mil objetos africanos no Museu do Quai Branly, também o Museu Britânico, em Londres, veio admitir que alguns artefactos das suas coleções de África tinham “histórias difíceis, pela forma como foram obtidas, em particular através de ação militar”, comprometendo-se a “reexaminar estas histórias e dar-lhes o respeito que merecem, em diálogo com parceiros africanos.” Em causa estão 900 objetos do Reino do Benim, atual Nigéria, roubados da sua capital em 1897 por forças militares britânicas. Em Portugal, a questão da restituição do património às ex-colónias já foi levantada pela deputada Joacine Katar Moreira em janeiro de 2020, propondo uma “estratégia nacional para a descolonização do conhecimento”. Contudo, em 2018, António Pinto Ribeiro, ex-curador da Fundação Gulbenkian, realçava que o país tinha um “problema gravíssimo”, uma vez que “não há listagens das peças de arte vindas das antigas colónias.” Esta “deverá ser uma tarefa prioritária dos próximos governos”, disse o investigador à Agência Lusa na altura.
Nascido no Congo, uma antiga colónia da Bélgica, Mwazulu Diyabanza considera que o património levado de África para as colónias entre 1880 e 1960 foi uma “vasta operação de rouba e pilhagem, que se deu após África sofrer um dos maiores crimes contra a humanidade: a escravatura.” O ativista de 42 anos não se opõe a que objetos de África sejam exibidos em museus da Europa – mas quer que o património seja devolvido antes, de forma a poder ser emprestado mais tarde nos termos estabelecidos pelos donos.
Líder do grupo pan-africano Unité, Dignité, Courage, uma organização que luta pela “libertação e transformação de África”, Diyabanza defende o direito às restituições dos países europeus pelos crimes cometidos contra os africanos durante a era colonial. No futuro próximo, pretende continuar a reclamar o património africano de diferentes países, para além de França e Holanda. Na sua lista de espera, estão países como Espanha, Alemanha, Reino Unido, o Vaticano e… Portugal. A VISÃO conversou com o ativista congolês.
Já passou dias na prisão e recebeu várias multas por tentar tirar artefactos africanos de diferentes museus da Europa. Chama a esta prática, que muitos furto ou roubo, “diplomacia ativa”. Acredita que esta vá inspirar ativistas de outros países e tornar-se mais comum em diferentes locais da Europa?
Nós acreditamos que o nosso método de diplomacia ativa quebra o silêncio imposto até agora pelas estruturas protocolares. Graças a ele, desafiamos a diplomacia adormecida e hipócrita desenvolvida nos gabinetes das organizações internacionais à volta da questão da restituição do património cultural e religioso de África. Este método tem-se revelado muito inspirador para a juventude europeia de origem africana e para a própria diáspora africana, mas também tem vindo a intrigar e causar interesse nos jovens europeus de ascendência europeia, que se apressam a descobrir um pouco mais sobre a nossa herança africana. Uma vez que os governos ocidentais estão a ouvir esta diplomacia ativa, acredito que o nosso método de ação irá continuar a alastrar-se, como tem vindo a acontecer.
Para além do regresso dos artefactos aos seus países de origem, que outro tipo de restituição defende que os antigos países colonizadores devem fazer para compensar o seu legado de séculos em África?
Em primeiro lugar, os países da Europa devem aceitar o simples princípio do reconhecimento dos seus crimes do passado, o que contribuirá significativamente para acalmar os ânimos e começar a curar as feridas vivas na nossa memória história – e em nós próprios, enquanto descendentes de pessoas oprimidas e privadas do seu património cultural e religioso. Assim, esta restituição deve obedecer a uma lógica de retificação dos erros do passado, de forma a ser bem sucedida. Para este efeito, devem ser criados museus de descolonização, com o objetivo de reabilitar a verdade histórica sobre todas estas obras roubadas, assim como sobre os criminosos que facilitaram este roubo do nosso património.
Posteriormente a esta reparação histórica, na qual os países europeus devem restaurar a verdade sobre o que realmente aconteceu durante estes tempos negros de pilhagem e de roubo do nosso património cultural e religioso, segue-se uma compensação financeira aos Estados, Reinos e famílias africanas, calculada de acordo com as receitas financeiras recolhidas durante estes tempos sombrios de exposição e exibição do nosso património. Para além desta reparação histórica e compensação financeira, também é necessária uma participação jurídica e política na elaboração de tratados e convenções internacionais destinados a reabilitar os povos oprimidos ao longo dos séculos e a condenar os culpados deste genocídio cultural. Neste sentido, deverá ser criado um “tribunal cultural internacional” para julgar estes genocídios culturais e religiosos, assim como a destruição intencional ou não intencional do património cultural e da herança destes povos oprimidos.
Será 2021 o ano em que os antigos países colonizadores irão enfrentar alguns dos fantasmas do seu passado?
É o nosso maior desejo. É por isso que a diplomacia ativa permite, em primeiro lugar, que o povo europeu condene todas as suas memórias destes séculos de infâmia e mentiras e, em segundo lugar, que os líderes europeus e ocidentais passem a restituir tudo o que foi retirado à força em África, na Oceânia, na América, na Ásia e nas Caraíbas, em nome da ética. Não acredito que a Europa se reduzirá por reconhecer estes crimes que foram cometidos noutros tempos e por reparar os danos causados. Pelo contrário, acredito que sairá enobrecida e que tal ajudará a uma vitória coletiva sobre o ressentimento e o espírito de vingança no continente europeu.
Em Portugal, é comum falar-se de um “colonialismo menos mau” do que o das outras potências europeias. Acha que este mito do “bom colonizador” tem algum tipo de fundamento?
O colonialismo é inerentemente maléfico, destrutivo e desumano. É triste constatar que algumas mentes perversas no mundo ocidental – por vezes até africanos – querem encontrar justificação para esta barbaridade imoral. Não podem haver pontos positivos num ato que despreza a dignidade de alguns, que reduz a pessoa humana ao estatuto de animal e que viola todas as regras de ética e moral elementares. Privar alguém de viver a sua cultura e as suas crenças é um crime e um genocídio cultural. A cooperação, as trocas e o comércio sempre ligaram diferentes povos ao longo da história da humanidade, muitas vezes sem a necessidade de violência, desprezo e crimes.
A ocupação colonial deixou-nos estradas de betão poluídas e poucos hospitais que nem são acessíveis à maioria do nosso povo. Gostaria de relembrar que o cientista alemão Leo Frobenius disse, quando os europeus encontraram os habitantes do Reino do Congo, que se tratavam de pessoas altamente civilizadas. Também Georges Ballandier notou que os congoleses tratavam com facilidade as enxaquecas, através de pequenas incisões, onde colocavam raízes de Tukula – um mal-estar que parecia difícil de se tratar na Europa nesta época, nos séculos XIV e XV. O Reino do Congo tinha largas avenidas rodeadas por grandes árvores, o que demonstrava um verdadeiro planeamento. Nós éramos uma sociedade organizada, que foi derrubada pelas barbaridades desumanas dos ataques de escravos e mais tarde pelo colonialismo e neo-colonialismo, incluindo o neoliberalismo.
Planeia vir a Portugal em breve? Quais considera serem as prioridades da sua missão no nosso país?
Estarei em breve em Portugal. Este país foi o pioneiro europeu do crime da escravatura, assim como da colonização. Foi um reino que recusou a mão estendida e civilizada dos reis do Congo e que começou a romper a base cultural, religiosa e espiritual da identidade de África em geral, e do Congo em particular. Sei que as peças mais antigas do nosso património se encontram em Portugal e Espanha. A minha solução proposta para a restituição do património e para a reparação histórica também se aplica a Portugal. Esta é a única forma de nos livrarmos deste passado criminoso e participar na construção de uma nova base de cooperação bilateral e multilateral, onde a identidade de cada um de nós será reconhecida e respeitada.