Em final de mandato, o Executivo camarário liderado pelo socialista Fernando Medina pretende concluir este ano uma rede ciclável em Lisboa com duas centenas de quilómetros, num investimento a rondar os 30 milhões de euros. Eleito pelo PSD e deputado municipal independente desde o início de 2019 – após ter rompido com o partido por divergências políticas insanáveis com a liderança de Rui Rio -, Rodrigo Mello Gonçalves, 45 anos, diz, em entrevista à VISÃO, que o plano de ciclovias da Câmara de Lisboa (CML) é feito de “experimentalismo e imposições”, e concretizado “à bruta”.
Ao criticar reiteradamente, como tem feito enquanto deputado municipal, o plano de ciclovias do Executivo camarário, não receia ser tido como alguém que “passa ao lado” da luta contra a poluição e a emissão de gases com efeito de estufa?
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Não. Esse é, aliás, um dos argumentos usados pela Câmara para criticar a oposição, onde quem contesta a forma como as coisas são feitas é logo acusado de estar agarrado ao passado, de ser contra os novos modos de mobilidade ou de não se preocupar com o ambiente. É uma visão maniqueísta do debate político que recuso. Mas também é elucidativa sobre a forma prepotente como o PS governa Lisboa. É uma espécie de quem não está connosco está contra a cidade.
Substancialmente, o que critica, afinal?
A forma como o plano de ciclovias tem sido implementado, o modo como a Câmara de Lisboa tem gerido esse processo, pela falta e até ocultação de informação, e por consequências que não são devidamente acauteladas, como sejam o estacionamento, o tráfego automóvel ou o problema das cargas e descargas nalgumas das zonas abrangidas. É que mais congestionamento de trânsito também significa mais poluição.
No essencial, que dados reivindica do Executivo e que não são comunicados à Assembleia Municipal?
Essa é uma das questões que mais polémica tem gerado, pois a Câmara refere que tem na sua posse diversos estudos sobre ciclovias e respetivos impactos, mas a verdade é que ninguém os conhece. Essa informação tem sido solicitada por diversas vezes, inclusive pela Comissão de Mobilidade da Assembleia Municipal e, apesar de o vereador da Mobilidade ter assumido publicamente o compromisso de a divulgar, a verdade é que não o faz. Em agosto de 2020, num requerimento que apresentei, e ao qual a Câmara tem a obrigação legal de dar resposta, pedi que me enviassem os estudos de impacto sobre o trânsito e sobre o comércio que a CML afirma ter. A resposta chegou-me agora, quase seis meses depois, curiosamente no dia seguinte à sessão da Assembleia Municipal em que foram discutidas três petições sobre ciclovias. Isto é de uma total falta de respeito pela Assembleia Municipal e pelo seu trabalho! Acresce ainda que, na resposta, o vereador não envia estudo nenhum, fornecendo apenas um relatório do CERIS, ligado ao Instituto Superior Técnico, e um gráfico com transações comerciais no Eixo Central, entre a Avenida da República e o Saldanha, retiradas de uma plataforma da SIBS. Já em relação a estudos de tráfego, nem uma palavra. Afinal não há? Ou há, mas não divulga? Isto não é uma forma séria de atuar.
Mas o Instituto Superior Técnico (IST) e a SIBS são entidades de credibilidade reconhecida…
Desde logo não podemos falar em estudos. O que o IST faz é uma contagem de ciclistas em diversos pontos da cidade, em determinados intervalos horários, procedendo ainda à caraterização desses ciclistas e das bicicletas. Trata-se de um relatório muito específico, que merece ser devidamente analisado. Já quanto à SIBS, também não se trata de nenhum estudo. O que a CML forneceu foi um gráfico com a evolução do número e do volume de vendas, por Terminal de Pagamento Automático, no Eixo Central, antes e após a instalação da ciclovia em 2017, concluindo que houve um aumento das transações comerciais que resultaram da ciclovia. É isto um estudo de impacto sobre o comércio? Parece-me poucochinho, para ser simpático…
Porquê?
Se olharmos para outras zonas comerciais da cidade, sem ciclovia, muito provavelmente teremos também um crescimento do volume de transações para o mesmo período de tempo. Isto deve-se ao dinamismo, nomeadamente ligado ao turismo, que Lisboa tinha nessa altura.
Tem recebido queixas de moradores de locais onde foram ou estão a ser construídas ciclovias?
Tenho recebido várias, quer de moradores quer de comerciantes. A crítica comum é a falta de informação prévia sobre as alterações que vão acontecer na sua zona e os problemas relacionados com o congestionamento do trânsito ou com a perda dos já escassos lugares de estacionamento que essas modificações vão provocar ou já provocaram. O caso da Avenida Almirante Reis é um exemplo dessa realidade. De um dia para o outro, residentes e comerciantes deparam-se com uma ciclovia “pop-up” que acabou por agravar os numerosos problemas que aquela zona já tinha. A tal ponto que a Câmara já veio anunciar que irá fazer uma alteração profunda da ciclovia da Almirante Reis. Veremos como irá ficar.
Seja como for, as queixas foram atendidas…
Mas estes experimentalismos num dos principais eixos viários de Lisboa não são aceitáveis. O próprio presidente da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta, numa audição na Comissão de Mobilidade, referiu que não sabia se existia um estudo de tráfego para a ciclovia da Almirante Reis, mas que obviamente tinha de ser feito. E existem também muitas queixas ligadas ao problema da falta de estacionamento que, nalgumas zonas, é agravado pela implantação de uma ciclovia ou de espaços de estacionamento para bicicletas. Pagam dístico, pagam Imposto de Circulação, Imposto Sobre Veículos, inspeção automóvel e por aí adiante – e, depois, ouvem falar de milhões para ciclovias da parte dos mesmos que referem constrangimentos financeiros para não avançar com a construção de parques de estacionamento que tinham sido prometidos. Há quem chegue a casa no final de um dia de trabalho e tenha de dar voltas durante uma hora ou mais para conseguir estacionar. Muitas vezes só consegue fazê-lo bastante longe de casa ou deixando o carro mal estacionado. Obviamente, isto gera indignação e um sentimento de revolta nas pessoas.
Neste cenário parece que, de repente, o proprietário automóvel passou a ser um alvo a abater e isso não é aceitável
Diria que os cerca de €30 milhões alocados pelo Executivo camarário às ciclovias traduzem dinheiro mal gasto?
Nalguns casos sim, noutros não. Dependerá das zonas, dos impactos positivos ou negativos que existam ou até mesmo das reformulações que tenham de ser feitas posteriormente, devido à falta de planeamento inicial ou de estudos prévios de impacto, como acontece na Almirante Reis. Mas de uma forma geral faz sentido haver investimento numa rede ciclável em Lisboa. Tem é de haver informação, preparação e, acima de tudo, bom senso. Lisboa tem de se adaptar às novas realidades da mobilidade, mas deve fazê-lo com gradualismo e transparência, e envolvendo as comunidades locais. Não com experimentalismo e imposições. A mobilidade suave não pode ser implementada à bruta: pressupõe que existam em paralelo outras políticas, nomeadamente de âmbito metropolitano, no que diz respeito ao transporte público ou ao estacionamento.
Parece-lhe que a crise pandémica deveria implicar uma revisão do investimento decidido para as ciclovias?
À luz da realidade atual e perante os problemas que estamos a ver em Lisboa, os montantes parecem-me excessivos. Não podemos ignorar a crise causada pela pandemia, que nos obriga a uma reformulação de prioridades, quer pela quebra acentuada de receitas municipais, quer pelo aumento de despesas para apoios económicos e sociais às pessoas e às empresas. Tudo isto tem de ser levado em conta na gestão financeira do município – e a situação em que foram decididos os montantes para as ciclovias é completamente diferente da que temos hoje.
Na sua opinião, numa cidade como Lisboa a fluidez do trânsito automóvel e os lugares de estacionamento necessários são incompatíveis com a existência de ciclovias?
Não são incompatíveis, e não têm de o ser. A questão é que Lisboa tem um problema de excesso de trânsito automóvel, que não é de agora, mas que este Executivo camarário também não resolveu. Já em 2009 o então vereador Manuel Salgado falava do problema do número excessivo de carros que todos os dias entram e saem de Lisboa, mas a verdade é que a situação pouco se alterou. E o problema do estacionamento é outra dor de cabeça habitual dos lisboetas. Em muitas zonas da cidade os residentes não têm onde estacionar. Também aqui a Câmara falhou, ao não prosseguir uma política de construção de estacionamento, seja em subsolo, seja em silos. Fizeram-se promessas, inclusive no programa “Uma praça em cada bairro”, mas que nunca foram concretizadas – e o problema arrasta-se. Depois, entra a EMEL e começa a multar e a bloquear. Não é forma de resolver as coisas! E é neste quadro já complicado que avança a construção de ciclovias que, nalguns casos, congestionam ainda mais o trânsito e, noutros, têm um “efeito devastador” no estacionamento, como refere a própria EMEL no seu Plano de Actividades.
Parece argumentar sempre em favor dos automobilistas…
A conjugação dos fatores que mencionei torna tudo mais difícil e acaba por gerar conflitos entre os diversos atores da mobilidade na cidade. E neste cenário parece que, de repente, o proprietário automóvel passou a ser um alvo a abater e isso não é aceitável. Tem de haver respeito por todos e a CML tem de saber gerir estes conflitos, procurando conciliar interesses e preocupações que, sendo diferentes, e por vezes até contrários, são legítimos. Mas nada é incompatível, desde que haja planeamento eficaz, envolvimento nas decisões, equilíbrio nas soluções e uma efetiva vontade política de resolver os problemas. Construção de ciclovias sim, mas antes há que saber pedalar e esta Câmara anda de triciclo no que toca a planear.