Todas as operações movidas contra jornalistas no âmbito do processo por violação do segredo de Justiça no caso E-Toupeira foram decididas pela procuradora Andrea Marques, que tutelava a investigação, e pela diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, Fernanda Pêgo. A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou à VISÃO que só houve duas diligências comunicadas à PGR e que ambas estão mencionadas no comunicado feito pelo DIAP de Lisboa: uma operação de buscas às instalações da Polícia Judiciária e a constituição de arguido de um então coordenador de investigação criminal da PJ (com a respetiva apreensão do seu telemóvel).
Estas duas diligências tiveram lugar a 5 de junho de 2019 e a 12 de dezembro desse ano, numa altura em que Lucília Gago já ocupava o topo da hierarquia do Ministério Público. A dúvida instalou-se porque quando a procuradora Andrea Marques ordenou à PSP que vigiasse os passos na via pública de dois jornalistas, em abril de 2018, na tentativa de perceber “com quem se relacionavam e que tipo de contactos estabeleciam com ‘fontes do processo’ (o processo e-toupeira), de modo a procurar identificar os autores das fugas de informação, também eles agentes da prática de crimes”, quem estava ao comando do Ministério Público era ainda Joana Marques Vidal. Estava então na reta final do seu mandato, do qual só sairia em outubro de 2018.
Esta tarde, contactada pela VISÃO, Joana Marques Vidal alegou que não podia esclarecer a dúvida porque como magistrada estava obrigada ao dever de reserva. Horas depois, a PGR acaba por confirmar indiretamente que a antiga PGR não esteve a par destas operações.
Numa tentativa de explicar a vigilância de dois jornalistas (Carlos Rodrigues Lima, da Sábado, e Henrique Machado, hoje TVI, à data jornalista do Correio da Manhã) sem autorização de um juiz e a extração para o processo de um histórico de mensagens telefónicas entre o coordenador da PJ e outras duas outras jornalistas (Sílvia Caneco, da VISÃO, e Isabel Horta, ex-jornalista da SIC), o DIAP de Lisboa informou num longo comunicado que sempre que as diligências “suscitaram maior melindre” estas “foram previamente comunicadas e, inclusivamente, acompanhadas pela hierarquia”.
O que estava ainda por esclarecer era quem era a hierarquia: se a Procuradora-Geral da República ou se a superiora hierárquica direta de Andrea Marques e sua diretora no DIAP de Lisboa, a procuradora Fernanda Pêgo. Dúvida que é agora esclarecida pela PGR.
A VISÃO perguntou ainda à Procuradora-Geral da República se concordava com as operações desencadeadas pelo DIAP de Lisboa que visaram quatro jornalistas e se entendia que cumpriam os requisitos legais, mas não obteve respostas. Entretanto, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, disse ao Observador que vai pedir ao Conselho Superior do Ministério Público para avaliar a investigação de Andrea Marques.
O inquérito teve início a 9 de março de 2018, três dias depois de uma fuga de informação sobre uma operação de buscas no âmbito do caso E-Toupeira, que levou o tema a ser notícia nalguns sites de jornais logo pela manhã (do dia 6 de março). A procuradora do processo entendeu que no momento em que a diligência começou a ser noticiada em alguns sites, o conteúdo das peças processuais se encontrava “acessível a um núcleo muito restrito de pessoas, todas ligadas ao processo por razões funcionais”, razão pela qual resolveu abrir um inquérito. Só que a investigação não começou pelos atores judiciários, mas pelos próprios jornalistas, e logo com diligências invasivas: vigilâncias que foram ordenadas à PSP, e que deixam muitas dúvidas legais.
Porque o crime em causa – violação do segredo de Justiça – não se enquadra no catálogo de crimes da lei nº5/2002 que permitem recolha de som e imagem (só se aplica a uma série de casos concretos, como os crimes de tráfico, o contrabando ou a corrupção); porque as diligências não foram autorizadas por um juiz de instrução; pela desproporcionalidade – estava sob suspeita um crime de violação do segredo de Justiça, punido no máximo com dois anos de prisão, o equivalente à moldura penal de um crime de injúria -; pelas restrições à liberdade de imprensa, princípio constitucionalmente consagrado; pela potencial violação do sigilo profissional do jornalista e quebra da confidencialidade das suas fontes – até porque as vigilâncias poderiam apanhar os jornalistas com outras fontes de informação que não tivessem qualquer ligação com as fugas de informação do processo E-toupeira.
Apreensão de emails e mensagens telefónicas
Só em 2019 o Ministério Público passaria à segunda fase da investigação e promoveria operações de busca na Polícia Judiciária e apreensão de correio electrónico e de faturações detalhadas de alguns dos seus profissionais ligados ao combate à corrupção, e até de Almeida Rodrigues, antigo diretor daquela polícia. A procuradora Andrea Marques quis saber tudo o que tinha sido comunicado nos seis meses antes e nos seis meses após a operação de buscas do caso E-Toupeira. Inclusivamente o que tinha sido apagado.
Foi no meio deste processo que um coordenador de investigação criminal da PJ foi constituído arguido e viu ser-lhe apreendido o telemóvel. A partir deste aparelho, a procuradora do DIAP de Lisboa emitiu um despacho em que mandou extrair para o processo o histórico das mensagens trocadas com a jornalista da VISÃO e com a ex-jornalista da SIC, que ao contrário dos colegas não foram ainda ouvidas nem na qualidade de testemunhas nem de arguidas. A jornalista da VISÃO desconhece o teor dos sms recolhidos e o propósito dessa recolha – já que não escreveu sobre a operação de buscas do caso E-toupeira, que era o objeto do processo. Essa diligência do Ministério Público poderá configurar um crime de violação de correspondência, além de poder constituir uma violação do sigilo profissional do jornalista.
A verdade é que também estas apreensões eletrónicas levantam muitas dúvidas legais. Fontes judiciais ouvidas pela VISÃO argumentam que os crimes que estão sob suspeita neste inquérito também não permitem que sejam apreendidas mensagens telefónicas nem emails. No processo, que decorre há quase três anos, o Ministério Público imputa ao coordenador da PJ suspeitas de três crimes: violação do segredo de justiça, falsidade de testemunho e violação do dever de funcionário. Só que o último depende da apresentação de queixa, e Luís Neves, atual diretor da PJ, recusou-se a fazê-lo, o que levaria o crime a cair por terra. Foi também na altura em que a nova direção da PJ tomou posse, em junho de 2018, que terminaram as operações de vigilância a jornalistas, que tinham sido encomendadas à PSP.