Os ursos fazem-no. Os morcegos fazem-no. Até os porcos-espinhos europeus o fazem. E agora tudo parece indicar que os primeiros seres humanos também o podem ter feito: de acordo com especialistas em fósseis, hibernavam, o que lhes permitiu sobreviver aos invernos mais rigorosos.
A conclusão baseia-se em escavações feitas numa caverna chamada Sima de Los Huesos – o poço dos ossos – em Atapuerca, perto de Burgos, no norte de Espanha, e os cientistas argumentam que as lesões e outros sinais de danos nos ossos encontrados são os iguais aos dos ossos de outros animais que conseguiam abrandar o metabolismo e dormir durante meses.
Segundo a ciência, a hibernação é exatamente esse estado caracterizado por inatividade, um metabolismo mais lento e temperatura corporal mais baixa. Os animais que vivem em estado selvagem fazem-no regularmente para sobreviver à escassez de alimentos – e até há pouco não se sabia que os primeiros homens poderiam ter feito o mesmo.
A primeira referência a essa hipótese fora avançada por James Braid, considerado pai da hipnoterapia e um homem fascinado pelo ocultismo, que registou vários casos de humanos que sobreviveram em condições semelhantes à hibernação, no seu livro Observations on trance, de 1850. Mas não só. São também conhecidas as referências ao faquir indiano enterrado vivo e que, após permanecer no solo vários meses, regressou ao estado normal com boa saúde – num relato feito por Sir Claude Wade, o inglês que era governador da Índia na altura. É ainda conhecido um outro artigo com mais de cem anos, republicado pelo British Medical Journal em 2000, e que é um relato peculiar de como os pobres camponeses russos alegadamente sobrevivem à fome dormindo durante metade do ano. Dois anos antes,um artigo da revista Phisiology descrevera outros relatos do género.
Ficção científica…
Nestas últimas três décadas, os restos fossilizados de várias dezenas de humanos do tal poço de Atapuerca apontam no mesmo sentido. São vestígios com mais de 400 mil anos e, acredita-se, referentes aos primeiros neandertais e aos seus predecessores. Considerado um dos mais importantes tesouros paleontológicos do planeta, as suas descobertas têm proporcionado uma visão chave da forma como a evolução humana progrediu na Europa.
Agora, segundo um artigo publicado na revista L’Anthropologie, Juan-Luis Arsuaga, que liderou a equipa que primeiro escavou no local, e Antonis Bartsiokas, da Universidade Demócrito da Trácia, na Grécia, argumentam que os fósseis ali encontrados mostram variações sazonais e isso, sublinham, sugere que o crescimento ósseo foi interrompido durante vários meses de cada ano. Ou seja, aqueles primeiros humanos conseguiam desenvolver “estados metabólicos que lhes permitiam sobreviver longos períodos de tempo em condições geladas, com fornecimento limitado de alimentos e reservas suficientes de gordura corporal”. E essa hibernação era depois registada com perturbações no desenvolvimento ósseo.
“Pode parecer ficção científica, mas o que observamos é que a base genética e a fisiologia para um tal hipometabolismo podem afinal ser preservadas em muitas espécies de mamíferos, incluindo humanos”, sublinham Arsuaga e Bartsiokas. “Pelos vistos, uma estratégia de hibernação foi a única solução para sobreviverem, passando vários meses numa caverna durante os invernos mais gelados”, acrescentam, refutando os contra-argumentos até agora apresentados à sua análise. Por exemplo, sabe-se que os modernos Inuit (que vive no Canadá, Alasca e Gronelândia) e Sámi (outro nome para o povo lapão, que ocupa algumas regiões mais a norte da Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia) não hibernam, mas, como prosseguem os investigadores, porque se conseguem abastecer de peixe gordo e da gordura de rena durante o inverno.
…ou torpor?
Pelo contrário, a área em volta de Sima de Los Huesos, há meio milhão de anos, não fornecia nada parecido com o que se pudesse considerar comida suficiente. Como afirmam aqueles estudiosos, “a aridez da Península Ibérica não teria proporcionado outra alternativa senão obrigar aqueles povos a recorrer à hibernação nas cavernas durante todo o inverno”.
As reações a este anúncio não demoraram. “É um argumento muito interessante e irá certamente estimular o debate”, disse o antropólogo forense Patrick Randolph-Quinney da Universidade de Northumbria em Newcastle, citado pelo The Guardian. “Contudo, existem outras explicações para as variações observadas nos ossos encontrados em Sima e estas têm de ser abordadas na íntegra antes de podermos chegar a quaisquer conclusões realistas”.
Chris Stringer do Museu de História Natural de Londres, faz ainda questão de salientar que “os grandes mamíferos como os ursos não hibernam de facto, porque os seus grandes corpos não conseguem baixar o suficiente a sua temperatura – em vez disso, entram num sono menos profundo conhecido como torpor. Mas mesmo em tal condição, a exigência energética do cérebro do povo de Sima teria permanecido muito grande, o que lhes criaria um problema adicional de sobrevivência. No entanto, é uma ideia fascinante”, concordou, “e poderá ser testada, comparando os genomas do povo Sima, Neandertal e ainda Denisovan (essa espécie de hominídeo descoberta numa caverna na Sibéria e, mais recentemente, no Tibete, anunciada em 2010), procurando por alterações genéticas ligadas à fisiologia do torpor”.