Houve um acidente grave, muito grave. Houve internamento hospitalar prolongado, demasiado prolongado. Houve diagnóstico de traumatismo crânio-encefálico (TCE), duro, tão duro que nem conseguem explicá-lo. E depois, só restou um pedaço de escuridão, que de tão escura os impede de ver o que eram ou que são, ou talvez até o façam, mas aos bocadinhos. Três relatos de quem vive com amnésia, feitos com muitos e envergonhados cortes na narrativa – “desculpe” -, e de quem luta todos os dias por não se esquecer dos pormenores mais básicos – como, por exemplo, o nome da jornalista que está a falar com eles.
Em Portugal, há 20 mil casos de TAC por ano, dois mil dois quais considerados graves
Em Portugal, há 20 mil traumatizados crânio-encefálicos por ano, dois mil dos quais considerados graves, como estes três casos a que aqui damos voz. Nos jovens, a causa principal são os acidentes de viação, nos mais velhos, são as quedas.
A Associação Novamente é a única que dá apoio a estas pessoas, ajuda-as a renascer, a reaprender as coisas mais simples e também acompanha a família (já foram mais de 600) – o suporte fundamental nestas histórias e nas suas recuperações. Vera Bonvalot, diretora executiva, nota que “além da falta de memória, o TCE afeta outras dimensões da vida e é para nós importante chegar a mais pessoas que passam por esta situação difícil de forma a dar-lhes apoio”.
Após o trauma estipula-se um plano de reabilitação, mas essa recuperação é sempre longa e depende da localização e da extensão da lesão. A neuropsicóloga Sara Ribeiro lamenta que, muitas vezes, a parte que lhe diz respeito fique para trás em detrimento de outras questões do quadro do doente. “Na neuropsicologia trabalhamos as dificuldades e isso depende muito da motivação de cada um e do seu contexto terapêutico”, nota.
Após o trauma estipula-se um plano de reabilitação, que é sempre longo e depende da localização e da extensão da lesão
O ideal é começar a puxar pela memória entre um a dois anos, no máximo, depois do trauma. Através de jogos, exercícios, desafios pode estimular-se a atenção e melhorar a função cognitiva deteriorada, aumentando progressivamente a dificuldade do tratamento. “Quando não é possível melhorar essas capacidades, trabalham-se outras funções para servir de alicerce”, explica a especialista, habituada a seguir este tipo de doentes em contexto privado. Nessa consultas, também lhes ensina alguns truques, como ter um calendário para estruturar a semana com antecedência ou andar com um caderninho para se apontar tudo.
Resultados, nestes casos, nem no fim do jogo, porque uma reabilitação total torna-se quase impossível e o acompanhamento deve ser para a vida, sem nunca perder o otimismo. “É possível recuperar algumas funções, reintegrarem-se no mercado de trabalho, mas será sempre de modo diferente”, alerta a neuropsicóloga.
Estes três protagonistas aparecem, em pinceladas, num vídeo que o AXN lançou para alertar para o problema, bem mais comum do que se pensa. Veio isso a propósito da série italiana que tem estado a ser exibido neste canal por cabo, DOC. A ficção relata, de forma bastante livre, a realidade vivida por um médico de Milão, Pierdante Piccioni, que, depois de um grave acidente de carro, e de um coma, perdeu vários anos de memórias. Em Itália, ficou conhecido como o “doutor amnésia” e a sua história passou para o ecrã de TV.
“Não me lembro de viver em casa dos meus pais”
Sérgio Torres de Carvalho, 38 anos, vive hoje na Parede com a sua mulher, com quem namorou anos. “Sei que estava no hospital, que ela me pediu em casamento e que eu aceitei. Quer dizer, tenho um vídeo em que ela o faz…” Da cerimónia, realizada em setembro de 2019, pouco se recorda.
O casamento tem resultado, apesar das dificuldades permanente de Sérgio: enquanto ela vai trabalhar, ele ocupa-se em sessões de fisioterapia à sua perna mais teimosa, a arrumar a casa, a fazer as compras e a cuidar dos muitos animais com quem partilham a casa. É assim que tenta esquecer-se, ou será lembrar-se?, daquele dia de há quatro anos, quando bateu com a sua mota contra um carro parado. Já chegou ao hospital (não sabe qual, só sabe que foram quatro durante o seu périplo) em coma e assim ficou por mais 10 dias. Já ninguém acreditava que viesse a si ou que voltasse a levantar-se da cama. Sérgio contrariou todos as previsões mais pessimistas e está aqui para contar a história. No entanto, perdeu “muita memória”, não se lembra de viver em casa dos pais, do emprego que tinha a fazer cozinhas ou das aulas que frequentou até ao 9º ano. “Se calhar vou para a escola outra vez, a ver se meto alguma coisa na cabeça”, diz. Também espera regressar a um parque temático, pois gostar disso é das poucas certezas que tem. “Já fui duas vezes à Disney e outra ao Warner, mas não me lembro de nada. Quero lá voltar, mas por enquanto os médicos avisam-me que montanhas-russas nem pensar.”
“O Vasquinho está bem?”
Andreia João, 31 anos, era modelo quando um grave acidente de carro lhe trocou as voltas à sua carreira precoce, mas já lançada. Aliás, era a caminho de um trabalho, em Montargil, que ia, de boleia com outra Hospedeira de Portugal, para receber os convidados da inauguração de um hotel. Já lá vão 10 anos e de tanto contar a sua história, até parece que a sabe de cor, mas a verdade é que apenas a conhece dos relatórios médicos. “Em Benavente, chocámos contra uma carrinha, caímos por uma ravina abaixo, batemos contra um muro e uma árvore, tivemos de ser desencarceradas e levadas de helicóptero para o Santa Maria. Dizem-me que fui reanimada várias vezes. Entrei em coma e só voltei a ter consciência dois meses e meio depois, segundo consta.” Quando acordou, ou melhor, quando os olhos começaram a abrir, não falava, não se mexia, era um vegetal. Certo dia, pediu uma caneta, porque nunca perdeu a mobilidade do lado direito, e escreveu num papel: “O Vasquinho está bem?” O Vasquinho era o filho pequenino – lembrara-se de partes do seu nascimento.
À medida que via vídeos e fotografias da sua vida anterior, ia conseguindo juntar as peças. Hoje, diz, já começa a recordar-se do passado.
Andreia nunca mais trabalhou. Voltou para as Caldas da Rainha, de onde é natural, depois de um périplo por hospitais, centros de reabilitação e uma formação em ciências informáticas, onde conheceu Ricardo, com quem vive atualmente (são independentes e ótimos cozinheiros). Ainda faz fisioterapia duas vezes por semana. “Já tive autorização para tirar a carta e vou estudar contabilidade, porque sempre gostei muito de números”, planeia. O maior sonho? Poder oferecer ao namorado a sua primeira viagem de avião.
“Não fixo nada”
Raquel Patrício, 32 anos, acabara de chegar a Portugal para estudar Comunicação e Multimédia, na Universidade Lusíada. Até então, vivera com os pais em Macau. Andava, portanto, feliz, a dar os primeiros passos na sua independência, numa casa em Oeiras. Mas num dia de inverno, a caminho do cinema com os amigos, há um carro que a abalroa numa passadeira. “Andei 12 metros no ar e caí inconsciente”, conta, sem memória do sucedido, mas com a história na ponta da língua. Ficou um ano em coma, passou pelo Santa Maria, Egas Moniz e Alcoitão – o único sítio onde se lembra de estar internada.
Quando acordou do torpor em que esteve imersa durante tanto tempo, pensava que ainda estava no país onde cresceu. Nada do que se passara em Lisboa fazia parte das suas recordações. “Conhecia as caras, mas não sabia quem eram as pessoas e colocava-as todas em Macau. A minha memória parou na viagem de finalistas do secundário”, nota, resignada.
Só passados uns dias é que começou a gravar acontecimentos e rostos e histórias. Desde então, socorre-se de todos os truques comuns para não se esquecer das coisas, como lembretes no telemóvel ou riscos na mão. Já deixou a fisioterapia, apesar de continuar com dificuldades no lado direito do corpo, trabalha no arquivo da câmara de Oeiras em part-time e não voltou a estudar. “Não me lembro das coisas detalhadamente, não fixo nada. É muito frustrante.”