“Foi pão para aquela gente”, diz-se por ali, à boca grande, a propósito dos efeitos que o Rendimento Social de Inserção (RSI) teve na freguesia de Rabo de Peixe, concelho da Ribeira Grande, ilha de São Miguel, Açores, várias vezes apontada como das localidades mais pobres do País – e o que não faltam são vozes a atestar a afirmação. Oiça-se Piedade Lalanda, 58 anos, socióloga e professora universitária, desde 1989 ligada a projetos de desenvolvimento social em Rabo de Peixe. “O RSI teve um impacto muito positivo na vida daquela população. Todos, crianças e adultos, beneficiaram com a medida”, sublinha, insurgindo-se contra esta visão, muito apregoada recentemente, de que “ali nada deu certo”.
A localidade saltou para a ribalta na semana passada, depois de se conhecer o acordo feito entre o PSD e o Chega, depois das eleições regionais, para alcançarem uma maioria parlamentar e assumirem o governo – e de se saber que o partido de André Ventura propõe uma redução da “subsídio-dependência” na região. Uma visão secundada pelo líder dos sociais-democratas, que acabou por declarar que ficou convencido da necessidade depois de, numa visita que fez a Rabo de Peixe, ter ouvido um pescador dizer que “as pessoas não querem ir ao mar” – esquecendo que 30 % dos que ali têm direito àquele apoio social têm menos de 18 anos.
“Não se está só a dar um apoio monetário: trata-se de um contrato que permite fazer um diagnóstico das falhas de capacitação de cada família para depois ajudá-la a autonomizare-se”, conta ainda Piedade Lalanda, insurgindo-se com a perspetiva – inquinada, defende– que esquece não só como se conseguiu que as crianças passassem a frequentar regularmente a escola como também incentivou aquela população a procurar mais os cuidados de saúde primários, aumentado a adesão ao Plano Nacional de Vacinação e o combate ao alcoolismo, além da assistência prestada na procura de emprego.
Nem se julgue que a maior fatia do RSI ali distribuída se fica pela agora também tão mediática comunidade cigana. Nada disso – garante a responsável, lembrando que Rabo de Peixe é uma vila essencialmente piscatória, onde a grande tradição familiar se faz em volta das idas ao mar. “Tem sido um processo lento, mas está a acontecer, mesmo para quem quer continuar a tradição de viver com o que o mar dá. Porque para se ter licença de pesca é preciso ter no mínimo o 9º ano”.
Foi em 1996 que Portugal criou o regime de Rendimento Mínimo Garantido (atualmente conhecido por Rendimento Social de Inserção − RSI), indo ao encontro das recomendações formuladas pela Comissão Europeia, em 1992. Apresentando uma abordagem global, pretendia dar uma nova dinâmica à política social, e ultrapassar uma enraizada tradição de mero assistencialismo. Ou seja, a sua atribuição implica, desde sempre, uma série de compromissos a quem o recebe – incluindo não só a questão laboral, mas também escolar dos menores.
Desde então, prossegue Piedade Lalanda, a localidade açoriana de Rabo de Peixe viu ainda crescer a pesca turística, um complexo desportivo com piscina e tudo – que lhes valeu um campeão regional de natação – e um clube de futebol já na 3º divisão. E até se deu nova vida ao Caldo de Peixe, evento cultural que recria uma receita tradicional dos pescadores. Naquela que é hoje uma das freguesias mais populosas e jovens do concelho (com uma taxa de natalidade 10% superior à do resto do arquipélago), e onde fica o maior porto de pesca dos Açores, há ainda, segue Piedade Lalanda, “uma prática agrícola de grande sucesso e uma melhoria imensa nas condições de trabalho nas fábricas”. Cresceram e multiplicaram-se as escolas básicas, há posto de saúde e lar de terceira idade, tal como creches e espaços de ocupação de tempos livres para os mais novos, enquanto os pais trabalham.
Evolução a todos os níveis
Além disso, como nem só de valores empresariais se mede o bem-estar daquelas famílias, logo a especialista acrescenta que é uma comunidade muito solidária: “Se alguém não puder ir pescar, os outros dividem sempre o fruto do seu trabalho”, exemplifica, sublinhando que o tão mal-afamado RSI é um mero complemento ao pouco que cada um leva para casa. “Estamos a falar de valores na ordem dos 100, 200 euros, que recebem como complemento do seu salário. E é preciso ainda dizer que 30% das pessoas que recebem o RSI também trabalham.”
O espírito de partilha de que fala sente-se ainda nas contribuições que todos fazem para o clube desportivo e para a festa anual da localidade – porque “têm gosto que seja o melhor possível”. E nem quer ouvir falar do outro episódio também recorrentemente associado a Rabo de Peixe e que remete para o naufrágio de um barco que transportava droga e que fez dar à costa fardos e fardos de cocaína, num dia de mar bravo de 2001. A polícia ainda conseguiu apreender 400 quilos da mercadoria perdida, numa operação sem precedentes no arquipélago, mas muito do resto ficou nas mãos de uma população então muito castigada pela escassez e pela ignorância. Remata Piedade Lalanda: “É injusto lembrar isso porque hoje não tem um problema maior de toxicodependência do que outras regiões do país. E depois “há tudo o resto” sublinha ainda, “houve uma enorme evolução, a todos os níveis”.
O caso (muito) particular das comunidades ciganas
Este compromisso de manter as crianças a frequentar regularmente a escola aplica-se a todos os beneficiários do Rendimento Social de Inserção – e a comunidade cigana, que recebe cerca de 3% do valor total gasto com RSI, não está excluída disso. Aliás, essa era uma reivindicação de muitas daquelas crianças, nem sempre atendida – como recordava, há uns anos, Sónia Matos, uma das dirigentes da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP) num congresso sobre ciganos e educação, que decorreu no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa.
“Expliquei à assistente social que queria trabalhar e estudar, mas para isso precisava do RSI”, frisou, acrescentando que isso permitia-lhe chegar à beira da família e dizer que tinha aquele contrato. “Foi o que ajudou muitas meninas ciganas e a mim também” relatou. “O RSI mudou a minha vida. Diria mais, o RSI fez uma enorme revolução na comunidade cigana”.
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Foto: Luís Barra
Naquela altura, Sónia era já mediadora sociocultural e assistente operacional numa escola no concelho do Seixal – partilhando ainda com Olga Mariano a fundação da AMUCIP, que assinala, este 2020, vinte anos de existência e que nasceu com esse propósito de diminuir o absentismo escolar das crianças da comunidade e que depois, claro, acabou por ir mais além. “Podemos ser tudo o que quisermos”, dizia Olga Mariano, há uma década, à VISÃO, e a sua história era já um reflexo disso: os pais não tinham ido além do 4º ano, mas ela completara já o 12º, ao abrigo do programa das Novas Oportunidades, e havia já um ano que trabalhava como mediadora sociocultural.
“O pior foi a pandemia”
Mas não se fique com a ideia de que é uma prática particular daquela comunidade da Margem Sul. Também em Vialonga, no concelho de Vila Franca de Xira, se deram já vários passos no mesmo sentido – como mostrava à VISÃO a então presidente do conselho executivo do Agrupamento de Escolas de Vialonga, Armandina Soares, no já distante ano de 2009. Ali na Básica nº1 da Granja, uma menina confirmava à professora a sua razão para querer faltar menos à escola. “Senão, não podia aprender”, respondia, vivaça, Márcia, 8 anos. “Claro que nada disto se faz com gente que não queira estar aqui”, rematava Armandina Soares. “Mas estamos a partir o muro de isolamento em que vivem”.
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Foto: Jose Caria
Hoje, o atual responsável do agrupamento, Nuno Santos, confirma a enorme evolução que se sentiu. “Nesses primeiros tempos, essa meia dúzia daqueles miúdos na escola era uma grande conquista. Agora, já são perto de 150 nas várias escolas, do 1º ciclo ao Secundário”. E se, antigamente, como recorda o responsável escolar, havia pais que pediam aos professores para reterem os filhos no 4º ano até aos 12 anos – idade em que se iniciavam os ritos dos casamentos combinados – agora mesmo quem é criticado entre portas por deixar os filhos continuar a estudar, já vai procurando alternativa – nem que seja pelo ensino doméstico. “Se houve retrocesso, nos últimos tempos, foi sobretudo efeito da Covid-19. O pior foi a pandemia…”, assegura Nuno Santos. “Há muita gente a confessar que receia enviar os miúdos para a escola porque em casa têm sempre um avô ou uma avó…”, explica.