É preciso recuar aos anos 70 do século XX para compreender como Barbara Ketcham Wheaton concretizou The Sifter, cujo nome é uma alusão literal da peneira ou do coador, utensílios tão usados na cozinha. A base de dados com cerca de 130 mil entradas de informação, deriva de compilações feitas pela historiadora, nascida em Filadélfia, EUA, em 1931, na Biblioteca Schlesinger de Harvard e na biblioteca pessoal da sua vizinha, a prestigiada cozinheira Julia Child. No início da década de 1960, Julia Child e o marido entregaram a Barbara Wheaton as chaves de sua casa em Cambridge, Massachusetts. O casal partia de férias de verão para a Califórnia, mas queria que a sua jovem vizinha pudesse continuar a folhear a coleção de livros de receitas históricas de Julia Child.
Hoje, curadora honorária da Coleção Culinária da Biblioteca Schlesinger da Universidade de Harvard, na altura Barbara Wheaton tinha 30 anos e com ela os seus três filhos pequenos em casa. Para trás tinha ficado o doutoramento em História da Arte para se casar com o historiador Bob Wheaton. Ao descobrir a sua paixão pela culinária e o tesouro de livros exclusivos da sua vizinha célebre, Barbara questionou-se sobre a possibilidade de, usando a mesma metodologia que tinha aprendido nas aulas de história da arte, conseguiria fazer algo mais humilde: um livro de receitas.
Filtrar na era analógica
Nos anos que estudou em Harvard, Barbara apercebeu-se de que “a culinária, como a pintura e todas as artes, é moldada pela época e pelo lugar em que se realiza. Pode ser classificado da mesma forma e em muitos aspetos é mais descritivo”. Na biblioteca de Harvard mergulhou nas primeiras edições dos primeiros livros de receitas impressos e dos manuscritos que os precederam.
Rapidamente sentiu necessidade de um sistema para estruturar as informações e compará-las – era o tempo em que não havia computadores pessoais. Numa era totalmente analógica, Barbara usou os cartões perfurados McBee, uma espécie de “tear” automatizado, que permitia categorizar as informações de acordo com os diferentes orifícios e, posteriormente, filtrar o conteúdo dos diferentes cartões, percorrendo o conjunto com uma agulha de tricô. O sistema era eficaz, mas trabalhoso. Barbara ainda tentou acrescentar o uso de um código de cores, mas felizmente surgiu o PC da IBM, em 1982, e a historiadora investiu em aprender noções de ciência da computação.
O tão almejado livro de receitas, Savoring The Past, é publicado em 1983, abordando a cozinha francesa desde 1300 a 1789. Combinando os esforços analógico e digital, Barbara Wheaton desenvolveu uma abordagem estruturada para estudar livros de receitas históricos. Analisou metodicamente cada elemento de um livro de receitas, incluindo os seus ingredientes, o layout da cozinha e tecnologias às quais as receitas presumem que os cozinheiros têm acesso, as sugestões do autor para menus e o planeamento de refeições.

Uma base de dados sobre a vida
The Sifter reúne o registo de autores, receitas, técnicas, ingredientes de mais de sete mil livros e está disponível online para consulta e contribuição de qualquer pessoa, uma espécie de Wikipedia culinária. “Contém ingredientes, métodos e coisas relacionadas com livros de receitas. Mas a comida tem as suas raízes na ciência, agricultura, religião, filmes, televisão, revistas… Na verdade, é uma base de dados sobre o vida”, resumiu Barbara Wheaton, ao jornal espanhol El País, numa conversa a partir da casa de repouso onde mora. Na videoconferência marcaram também presença dois dos seus três filhos, Joe Wheaton e Catherine Saines, que colaboraram no lançamento da plataforma. No verão do ano passado contrataram dois programadores para concluir o projeto, um catálogo de mais de mil anos de livros de culinária europeus e americanos, desde o latim medieval De Re Culinaria, publicado em 800, até The Romance of Candy (1938), um tratado sobre doces britânicos. Decorrem negociações para incorporar cinco mil receitas medievais reunidas por investigadores da Universidade de Graz, na Áustria.
Contém ingredientes, métodos e coisas relacionadas com livros de receitas. Mas a comida tem as suas raízes na ciência, agricultura, religião, filmes, televisão, revistas… Na verdade, é uma base de dados sobre o vida
Barbara Wheaton
Pesquisas simples, mas detalhadas
Mesmo procurando um único termo, as referências são cruzadas para que se encontre tudo de todas as categorias. “A mãe diz que é como uma matriosca, pode-se ir do mais amplo ao mais concreto ou do mais concreto ao mais abrangente”, explica o filho da investigadora ao El País.
Quem procurar “pão” encontrará receitas que vão de 1430 a 1845. The Sifter é uma peneira que permite filtrar pratos tão comuns como um ovo cozido e tão inusitados como um “guisado de rã com açafrão” ou um “bolo para provocar coragem nos homens”.
Questões sobre o papel da batata ao longo da história mundial, o tipo de receita encontrada nos livros de receitas para donas de casa difere daqueles escritos por chefs ilustres, o género dos autores determina o valor dos ingredientes usados, também encontrarão respostas.
Ao pesquisar “cupcakes”, por exemplo, veremos que o termo pode ter aparecido pela primeira vez em Mrs. Putnam’s Receipt Book and Young Housekeeper’s Assistant, um guia para mulheres que administravam famílias de classe média na década de 1850. Procure-se “pavão” e descobre-se que a carne do pássaro era, por vezes, comida entre 1400 a 1700 na corte inglesa. Selecionando “cheesecake” surgem 189 referências, incluindo a receita de 1790 de Robert Abbot para cheesecake de amêndoa, a receita de Hannah Glasse de 1805 para cheesecake de limão e a receita de E. Smith de 1742 para cheesecake de batata ou limão.
Barbara Wheaton sugere, por exemplo, usar o site para “peneirar” a relação entre o género dos autores de livros de receitas e o valor dos ingredientes incluídos nas suas receitas, como uma forma de medir o capital económico e cultural ao longo do tempo. Seguramente, um trabalho para várias décadas, quem sabe levado para a frente pelos seus descendentes.