Foi no fim do verão de 2015 que uma fotografia muito especial correu mundo. Era a imagem assombrosa de um menino de três anos estirado sem vida à beira-mar de uma praia na Turquia. Não sobrevivera à tentativa de chegar à Europa, depois de a sua família ter arriscado entrar num pequeno barco com o dobro da lotação. A embarcação virou pouco depois da largada. Na mesma viagem, morreram o irmão e a mãe, juntamente com outras nove pessoas. Todos vindos da Síria, país em guerra contínua desde 2011.
Perante tamanha tragédia, seguiram-se todas as homenagens e logo se vaticinou que era preciso repensar rapidamente as políticas de imigração existentes. A própria linguagem usada para se referir a questão mudou. De ilegais passaram a refugiados ou, no mínimo, requerentes de asilo. Mas agora que se assinalam 5 anos daquela morte trágica, a verdade é que nada parece ter mudado. Afinal, foi há pouco menos de duas semanas que morreram 50 pessoas num único naufrágio próximo da costa líbia. Cinco eram crianças.
Nesta rota do Mediterrâneo, a mais mortífera dos últimos anos, só 2020 soma já mais 300 aos milhares de mortos dos anos anteriores. Os números a nível mundial têm ainda mais zeros. Estima-se que haja cerca de 80 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo. É qualquer coisa como um por cento da população total mundial. Um valor que quase duplicou na última década. Segundo o ACNUR, é o mais alto registado desde a Segunda Guerra Mundial.
Sem saída à vista?
No início de março, ainda a OMS não declarara a pandemia, uma outra notícia passava relativamente despercebida. Foi quando se anunciou que três homens eram condenados a 125 anos de prisão pela sua participação no afogamento do rapazinho, que se tornou um símbolo dos efeitos da guerra na Síria. A imagem que fizera as primeiras páginas dos jornais na Europa (e no resto do planeta) alimentara a ideia de que aí viriam novas políticas para a multidão que continua a tentar a sua sorte, fazendo-se ao mar às portas da Europa. E que a tragédia que assolara a família de Abdullah, pai de Aylan e único sobrevivente dos Kurdi a bordo, não voltaria a repetir-se.
Mas as contas do ACNUR, feitas no final de julho, já deixavam antever que este seria um aniversário triste. As travessias que se sucedem, sem descanso, ganharam recentemente alguma atenção quando se anunciou que na região estava o Louise Marie, navio financiado por Banksy. Em poucos dias, resgatara mais de 200 pessoas.
Ao mesmo tempo, a embarcação Sea Watch 4 anunciava que, em dez dias, recolhera outras 350 pessoas. O consumo da água já estava a ser racionado, tal com o resto dos mantimentos. E todos, resgatados e tripulação, estavam absolutamente exaustos. Sem saída à vista. Um navio pesqueiro com outros 350 migrantes recolhidos das mesmas águas teve melhor sorte. Conseguiu desembarcar em Lampedusa, a ilha italiana que fica mais perto do norte de África do que qualquer território europeu. Foi ali que, em 2013, ocorreu o mais trágico dos naufrágios. Mais de 360 mortos de uma só vez, uma contabilidade finalizada depois de muitos daqueles corpos irem dar à praia. E de onde, durante algum tempo, embarcações naúticas de diversos países europeus — Portugal, inclusive — ajudavam a vigiar os mares ( e ao resgate de pessoas).
Resposta inadequada, dizem ONG’s
“Continua a não existir qualquer programa dedicado de busca e salvamento liderado pela UE”, disse Federico Soda, chefe da missão da OIM na Líbia, no Twitter. Para depois acrescentar: “receamos que, sem um aumento urgente da capacidade de resgate humanitário, aumente o risco de mais catástrofes.
Um discurso que alinha com o de muitas organizações de direitos humanos, repetidamente a denunciar o que consideram uma resposta absolutamente inadequada por parte das autoridades europeias.
E a acusação é simples. Ao que parece, a União Europeia está a usar os aviões de reconhecimento no Mediterrâneo para localizar migrantes e alertar a Líbia para que os intercete. Alarm Phone, Borderline-Europe, Mediterranea Saving Humans e Sea-Watch garantem que “dezenas de milhares” foram devolvidos à Líbia desde que a prática foi adotada.
A Frontex, nome pelo qual é conhecida a agência europeia de gestão da cooperação operacional nas fronteiras externas, já negou as alegações. E argumentou mesmo que, se em algum momento a Líbia interveio, foi por decisão do centro de resgate — ao qual, “de acordo com o direito internacional, cabe a competência de decidir quais os barcos e área chamados a participar”, sublinhou, citada pelas agências internacionais. Falta dizer que é de facto da Líbia que saem grande parte destas embarcações, incentivadas por redes de tráfico e exploração de pessoas.