Ano de 1791, Inglaterra. O livreiro William Fox apela ao boicote ao açúcar proveniente das colónias britânicas nas Caraíbas, através de um panfleto com ampla divulgação. “Por cada meio quilo de açúcar, fruto de escravos importados de África, podemos considerar que estamos a consumir 50 gramas de carne humana”, escreve, num registo algo macabro, para dar força ao movimento abolicionista que defende o fim do tráfico de escravos. A iniciativa surge após o chumbo de tal medida no parlamento. Ao panfleto de Fox, amplificado por 70 mil cópias distribuídas porta a porta, juntam-se cartazes e anúncios no mesmo sentido, alguns afixados em lojas que abdicam de vender o açúcar “manchado de sangue”.
Estima-se que entre 300 e 400 mil pessoas aderiram ao protesto. O açúcar era o bem mais importado no país, e nenhuma estratégia parecia mais indicada do que atacar os lucros resultantes do trabalho escravo. Os britânicos acabariam por decretar o fim do tráfico só em 1807 e a abolição total da escravatura em 1833, mas o boicote ao açúcar caribenho, que se repetiria nesta segunda luta, haveria de fazer escola entre consumidores descontentes.
Das causas internacionais em defesa do meio ambiente e dos animais à condenação das práticas comerciais de grandes marcas, sem esquecer o mais célebre “buzinão” português e respetivo bloqueio da Ponte 25 de Abril, assim como as ações bem-sucedidas da DECO contra as taxas de multibanco e da Portugal Telecom, os boicotes têm servido os mais distintos propósitos. O mais recente definiu como alvo o “panfleto” de maior alcance da era moderna: a rede social Facebook, com os seus 1,75 mil milhões de utilizadores diários, quase um quarto da população mundial.
A estratégia das organizações de direitos civis norte-americanas promotoras do boicote em nada difere da seguida pelos abolicionistas britânicos no século XVIII. Ao desafiarem os anunciantes a cancelarem as campanhas publicitárias no Facebook, a intenção é atingir a grande – e quase exclusiva – fonte de receitas da rede social, na ordem dos 70 mil milhões de dólares anuais. “Enviem ao Facebook uma mensagem poderosa: os vossos lucros nunca compensarão a promoção do ódio, do fanatismo, do racismo, do antissemitismo e da violência”, pedem os responsáveis do movimento #StopHateforProfit (“Parem de lucrar com o ódio”, numa tradução livre), lançado a 17 de junho.
Desde então, grandes marcas como Coca-Cola, Starbucks, Pfizer, Boeing, Ford, Volkswagen, Honda, Unilever (Dove, Omo, Lipton, Knorr, Ben & Jerry’s, etc.), Lego, Adidas, Puma, Merrell, HP ou PlayStation uniram-se à causa, que exige medidas mais agressivas no combate ao racismo, às notícias falsas, à propagação de teorias da conspiração e às mensagens instigadoras de ódio e violência – como a de Donald Trump, a 29 de maio, a ameaçar com tiros quem aproveitasse para pilhar lojas durante as manifestações motivadas pela morte de George Floyd.
Na ocasião, Mark Zuckerberg criticou o Twitter por ter assinalado a declaração como “glorificadora da violência”, recusando o papel de polícia da verdade “de tudo o que é dito online”. O fundador do Facebook está a encarar o boicote dos anunciantes como uma crise de relações públicas, ao invés de uma ameaça financeira, segundo uma comunicação interna divulgada pelo site de tecnologia The Information e já confirmada por um porta-voz da empresa. “Vão voltar em breve”, disse Zuckerberg aos colaboradores, sobre os anunciantes dissidentes. São já mais de 500, mas não passam de uma gota de água num universo de oito milhões, como ele bem sabe.
“Mais do que qualquer outra motivação, é uma forma de as marcas salvaguardarem a imagem, mostrando aos consumidores que são entidades responsáveis e não alimentam comportamentos desadequados com a sua presença publicitária”, observa Pedro Pimentel, diretor-geral da Centromarca, Associação Portuguesa de Empresas e Produtos de Marca. “O digital assume uma importância cada vez maior, ainda mais perante a pandemia que estamos a viver, mas as marcas têm de estar alinhadas com os valores da sociedade. É por isso que também se afastam quando estão associadas a pessoas que revelam comportamentos condenáveis, como aconteceu há uns anos com o golfista Tiger Woods.”
As duas faces do boicote
Várias marcas que agora se associam ao boicote ao Facebook já foram elas próprias boicotadas. A Coca-Cola, por suspeitas de mandar matar delegados sindicais na Colômbia ou por apoiar o regime sul-africano do Apartheid; a Adidas, por fabricar chuteiras com pele de canguru; a Ben & Jerry’s, por apresentar vestígios do herbicida glifosato nos seus gelados; a HP, por equipar o sistema prisional israelita, acusado de deter e torturar crianças; a Starbucks, por um sem-número de razões, a última das quais quando se soube, no mês passado, que proibira os funcionários de usarem referências ao Black Lives Matter apesar de ter declarado publicamente o apoio ao movimento. Dois dias depois, a cadeia de café anunciava a produção de 250 mil t-shirts alusivas à causa para os empregados que as quisessem usar.
“O boicote é uma arma sempre muito temida”, reconhece Pedro Pimentel. “Por vezes, surge por razões mais poderosas, noutras, por razões mais supérfluas e acaba por nascer, crescer e morrer em minutos, mas nenhuma marca gosta de ter reações adversas.” Com o risco de propagação que hoje as redes sociais oferecem, cortar o mal pela raiz pode ser a melhor solução. “As marcas vivem da sua reputação. Quando a perdem, perdem o seu valor.”
A Nestlé resiste desde os anos 70. A marca suíça, líder mundial nas vendas de leite infantil, está debaixo de fogo há mais de 50 anos, quase sempre por promover a sua fórmula como alternativa ao leite materno, mantendo-se até hoje a alegação de práticas comerciais abusivas, sobretudo em países mais pobres.
Ao longo da História recente, o comércio de peles de animais talvez tenha sido o mais penalizado pela pressão dos consumidores e de grupos ativistas como a PETA. Zara, Armani ou Versace foram cedendo a essas pretensões e, em 2018, chegou a vez de a Burberry renunciar ao vestuário com pele verdadeira. Já a francesa Hermès continua na mira da organização de proteção dos animais, por causa das malas confecionadas com pele de crocodilo, enquanto a companhia aérea Air France é visada por transportar macacos para experiências laboratoriais.
A ponte, o multibanco e a PT
Em Portugal, contam-se pelos dedos de uma mão os boicotes que tiveram impacto. O mais famoso é, provavelmente, o bloqueio da Ponte 25 de Abril contra o aumento das portagens de 100 para 150 escudos. Depois de dias consecutivos de protesto em forma de “buzinão”, seis camionistas estacionaram na praça das portagens, a 24 de junho de 1994, e interromperam a circulação no tabuleiro, de manhã à noite. Quem parou a seguir juntou-se à inédita forma de luta, que só terminou com uma carga policial sobre os manifestantes. O aumento das portagens viria a ser suspenso – mas só até setembro.
A DECO alcançou vitórias bem mais expressivas contra a rede multibanco e a Portugal Telecom (PT), travando taxas que as duas entidades pretendiam aplicar aos clientes. No primeiro caso, esteve em causa uma cobrança por cada operação realizada, fosse uma transferência ou uma consulta do saldo. Num dia de 1994, a associação de defesa do consumidor desafiou os portugueses a prescindirem de pagamentos por multibanco e a dirigirem-se aos balcões dos bancos em vez de utilizarem as caixas de levantamento automático. “Houve uma grande adesão, traduzida na utilização muitíssimo limitada das máquinas e em algumas filas nos balcões”, recorda Jorge Morgado, secretário-geral da DECO entre 1991 e 2016. A medida nunca foi adotada, apesar de outras tentativas posteriores por parte dos bancos.
No caso que envolveu a PT, já havia antecedentes numa relação pouco transparente com os consumidores. A ausência de uma fatura detalhada, por exemplo, criava dúvidas sobre a legitimidade dos valores cobrados e originava queixas. “A taxa de ativação da chamada foi a gota que caiu num copo já cheio”, ilustra Jorge Morgado, sobre a introdução deste novo custo no tarifário de 1999. Na época, àquilo que o antigo dirigente da DECO classifica de “consumo mínimo obrigatório”, acrescia o preço do impulso e o da distância, consoante a chamada fosse local ou nacional.
Para reverter a situação, foi movida uma ação popular em tribunal, acompanhada de um boicote em que se “pediu às pessoas para tirarem o telefone do descanso, num determinado dia de semana, à hora de almoço, de modo a não prejudicar as empresas”. Segundo Jorge Morgado, “milhões de linhas ficaram interrompidas” naquele dia. Já a vitória em tribunal só seria confirmada em 2003, após recursos da PT até ao Supremo. “Rodearam-se dos melhores advogados, foram buscar a nata, mas a PT foi obrigada a reembolsar a taxa de ativação.”
Em 2008, a associação voltaria à carga, desta vez num boicote contra as petrolíferas, por demorarem a refletir nos preços dos combustíveis a desvalorização do barril de petróleo mas serem lestas sempre que ele subia. O “ato simbólico” de boicotar o abastecimento num certo dia não alterou essa tendência, que ainda hoje se mantém. “Não foi um êxito retumbante como os outros, mas serviu de empurrão para os partidos começarem a dedicar atenção ao problema”, contenta-se Jorge Morgado, para quem um boicote a uma marca deve ser encarado como uma greve de trabalhadores: “Só deve ser usado como último recurso.”
Dois marcos na História
A detenção da afro-americana Rosa Parks, por se recusar a ceder o lugar no autocarro a um branco, como mandava a lei em Montgomery, foi o rastilho para um boicote da comunidade negra aos transportes públicos daquela cidade do estado do Alabama. Liderado por Martin Luther King Jr., na sua estreia como ativista dos Direitos Civis, o protesto estendeu-se por cerca de um ano, desde dezembro de 1955. Terminou com um tribunal federal a determinar a inconstitucionalidade da lei e o Supremo a validar a decisão.
Poucos anos depois, no final dessa década, começaria outro boicote histórico, contra a importação de produtos da África do Sul. Alvo: o não menos segregacionista regime do Apartheid. A iniciativa partiu de um grupo de exilados em Londres e prolongou-se até às eleições presidenciais de 1994, ganhas por Nelson Mandela.