“A situação com que nos deparamos revelava uma série de medidas tomadas em cima do joelho. Era tudo muito atabalhoado, havia 60 pessoas infetadas no primeiro andar do lar, com quase 40 graus lá fora e condições de climatização muito más. Os circuitos de circulação foram implementados pelo pneumologista das forças armadas, faltava medicação que os doentes necessitavam e, caso fosse necessário dar medicação injetável, tínhamos de transferir imediatamente os pacientes para o hospital, porque no lar não havia condições para dar esse tipo de assistência. Mais do que cuidados médicos, faltavam cuidados básicos, como pessoas para dar a medicação aos doentes, porque muitos empregados estavam de baixa ou tinham ido para casa infetados”.

O relato é de um médico que prefere não ser identificado e encontra ecos nas várias denúncias que se têm acumulado na Ordem dos Médicos, na Ordem dos Enfermeiros e no Sindicato Independente dos Médicos (SIM), relativamente à situação vivida no Lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (FMIVPS), em Reguengos de Monsaraz. Com o primeiro caso de Covid-19 registado a 18 de junho, o lar deu origem àquele que viria a ser o maior surto da doença provocada pelo novo coronavírus no Alentejo, registando, até hoje, 162 casos positivos, dos quais 124 ainda ativos e 17 mortes.
“Os médicos que foram destacados para ir para o lar, nos primeiros 15 dias, começaram a assistir a situações que não eram favoráveis a bons desenlaces clínicos, reportando-as à Ordem dos Médicos e às autoridades, dizendo que aquilo tinha de ser organizado de outra maneira”, conta Alexandre Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. O médico explica que neste momento, está em campo uma comissão de inquérito da Ordem, com o objetivo de “perceber se os processos clínicos estavam bem organizados, os médicos tinham meios à sua disposição para tratar os doentes ou se lhes foi imposto tratar doentes para os quais não tinham competência”.
Os médicos que foram destacados para ir para o lar, nos primeiros 15 dias, começaram a assistir a situações que não eram favoráveis a bons desenlaces clínicos
alexandre lourenço – ordem dos médicos
Para além da Ordem dos Médicos, também o Ministério Público decidiu “proceder a averiguações” e a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados anunciou que vai averiguar “como estão a funcionar os lares portugueses nesta fase da pandemia” de forma a apurar “eventuais ofensas aos direitos humanos e a eventualidade de as mesmas justificarem a intervenção dos tribunais”.
Falta de pessoal
Foi há um mês que uma idosa de 85 anos chegou ao Hospital do Espírito Santo, Évora, vinda do Lar da FMIVPS, com sintomas de Covid-19, acabando por testar positivo ao Sars-CoV-2. Um dia depois, já o número de casos positivos era 55 e passados seis dias registava-se a primeira morte. A progressão exponencial do número de casos dentro do lar obrigou muitos funcionários infetados a ficarem em isolamento, deixando a instituição com falta de pessoas para cuidar dos utentes e sendo necessário recorrer a enfermeiros do Agrupamento de Centros de Saúde da Região Alentejo (ACESRA).
“Em inspeções levadas a cabo em vários lares, percebemos que muitos incumprem pela falta de contratação de enfermeiros, recorrendo ao Serviço Nacional de Saúde para tentar encontrar os recursos necessários para aquilo que deviam ter e não têm. Existe uma grande promiscuidade entre público e privado”, explica Sérgio Branco, presidente do Conselho Diretivo Regional da Secção Regional do Sul da Ordem dos Enfermeiros. “A questão de Reguengos precisa de ser investigada para perceber se teria este perfil”, explica, revelando que há relatos de enfermeiros, anteriores ao início do surto, que parecem apontar para essa possibilidade.
José Robalo, Presidente da Autoridade Regional de Saúde do Alentejo (ARSA) responde, no entanto, que a ARS Alentejo não tem conhecimento dessas solicitações e que, apenas a partir de 18 de junho, “os enfermeiros do ACESRA começaram a prestar apoio aos idosos quando necessário, devido aos enfermeiros da fundação terem testado positivo”.
José Calixto, presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz e também presidente do Conselho de Administração da FMIVPS, assegura que, antes do surto, o lar tinha dois enfermeiros a contrato, cumprindo o rácio imposto pela Segurança Social. “Desempenhavam funções relacionadas com administração de medicação e acompanhamento imediato dos utentes”, afirma, explicando que, “apenas em caso de descompensação dos utentes, necessidade de realizarem pensos ou acompanhamento de situações mais concretas que tivessem a ver com as Unidades de Saúde Familiar de medicina geral ou cuidados da comunidade, recorríamos ao Sistema Nacional de Saúde”.
Dada a fragilidade que, devido ao surto de Covid-19, alguns utentes apresentam atualmente, o Presidente da FMIVPS assegura que está “a tentar contratar mais três ou quatro enfermeiros para não sobrecarregar o Serviço Nacional de Saúde”.
A espera dos primeiros 15 dias
A Ordem dos Médicos afirma que ainda não conseguiu perceber bem o que se passou entre 18 de junho e 3 de julho, data em que os 60 idosos infetados foram finalmente transferidos do lar para um pavilhão multiusos, disponibilizado pela Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz. “A prática mais comum neste tipo de situações é deslocar os doentes e avaliá-los em instituições médicas, normalmente hospitais, para depois, de acordo com a gravidade das situações, decidir se retornam a casa ou ficam internados”, comenta Alexandre Lourenço. “Não percebo porque é que isso não aconteceu”.
José Calixto afirma que nunca lhe foi comunicada falta de vagas nas enfermarias Covid nem nos Cuidados Intensivos Covid do Hospital de Évora e admite que “o lar não tinha condições para ser uma ala de Covid em que todos os utentes tinham de permanecer num único piso, devido à necessidade de criar um circuito limpo no andar inferior”.
Apesar de não haver falta de vagas nos hospitais e de a permanência no lar obrigar 60 infetados a estarem confinados no mesmo andar, José Robalo, presidente da ARS Alentejo, emitiu um despacho a 25 de junho, no qual determinava “a obrigação” de os hospitais “sob a esfera de influência da ARSA” garantirem “dois profissionais médicos de área de Medicina Interna”, por turnos de 24 horas na Estrutura Residencial para Idosos (ERPI) de Reguengos de Monsaraz. Tanto a Ordem como o Sindicato Independente dos Médicos consideram a decisão ilegal e esperam que venha a ser averiguada ao longo das investigações que se encontram em curso.
Nas palavras de José Robalo, “nem todos os doentes com Covid positivo têm critérios de internamento hospitalar”. José Calixto revela que a análise clínica responsável por definir estes critérios só foi feita a 2 de julho, 15 dias após o aparecimento do primeiro caso. Permanece a dúvida sobre a razão pela qual os utentes tiveram de esperar 15 dias até serem transferidos do lar para o pavilhão multiusos.
Competia-me informar, tal como fiz, todas as autoridades competentes, de que tinha um plano pronto e cumprir as instruções e timings da autoridade de saúde pública.
José Calixto – Presidente da Câmara e da fundação FMIVPS
O Presidente da Câmara assegura que o pavilhão estava previsto e preparado, enquanto unidade de retaguarda, desde abril e que sempre tentou deixar claro, “até publicamente, perante as televisões, que estava tudo pronto”, “Mas não é uma área em que eu pudesse assumir responsabilidades de decisão final. Competia-me informar, tal como fiz, todas as autoridades competentes, de que tinha um plano pronto e cumprir as instruções e timings da autoridade de saúde pública. Os doentes foram transportados para o pavilhão multiusos 24 horas após essa autoridade ter indicado à Proteção Civil Municipal que a mudança devia avançar.”
Transformar um lar num hospital
A condições oferecidas pelo pavilhão multiusos foram um dos principais alvos das críticas de médicos e enfermeiros. Alexandre Lourenço explica que, segundo as denúncias apresentadas “não existiam registos clínicos nem ficheiros dos utentes. Até ao fim-de-semana passado, não havia medicação injetável e faltavam condições para tratar pacientes de alto risco, que podem descompensar facilmente e não chegar a tempo ao hospital”.
Até ao fim-de-semana passado, não havia medicação injetável e faltavam condições para tratar pacientes de alto risco
alexandre lourenço – ordem dos médicos
Armindo Ribeiro, secretário regional do Sindicato Independente dos Médicos, acrescenta ainda, “aquilo não passa de um pavilhão onde estão depositadas pessoas, não é idóneo para as ter lá, havendo inclusive várias vagas em diversos hospitais do Alentejo onde essas pessoas poderiam estar internadas com dignidade”.
Além de discordar das críticas apontadas, assegurando que o pavilhão está “devidamente climatizado, com todas as condições a nível de duches, casas de banho e conforto, possuindo espaços exteriores ajardinados onde os utentes podem passear em segurança”, o presidente da FMIVPS afirma que os médicos nunca apresentaram estas queixas à direção técnica do lar. Já os médicos respondem que essa direção era impossível de contactar.
O pavilhão está devidamente climatizado, com todas as condições a nível de duches, casas de banho e conforto
josé calixto – PRESIDENTE DA CÂMARA E DA FUNDAÇÃO FMIVPS
“A pergunta que fazemos é: porque é que isto aconteceu? A mim interessa-me que os doentes sejam tratados pelos médicos certos, com as especialidades certas, nos momentos certos e locais certos”, afirma Alexandre Lourenço, perplexo por terem sido mobilizados médicos para um pavilhão e não doentes para um hospital.
Apesar de José Robalo defender que o pavilhão multiusos apresenta as mesmas características de um lar, “competindo aos profissionais de saúde a avaliação dos critérios necessários para referenciar os utentes para internamento no Hospital do Espírito Santo de Évora”, Alexandre Lourenço argumenta, “quando as autoridades locais chegam à conclusão que é preciso haver no pavilhão quatro enfermeiros em permanência e três médicos, dos quais um de medicina interna, estão a apresentar requisitos de um hospital”.
Assistimos a uma situação inexplicável e sem precedentes no país, em que um presidente da ARS dá a indicação de transformar um lar num hospital
Jorge Roque da Cunha – Sindicato Independente dos Médicos
“Assistimos a uma situação inexplicável e sem precedentes no país, em que um presidente da ARS dá a indicação de transformar um lar num hospital”, afirma Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos. Segundo o médico, os hospitais de Portalegre, Beja ou Évora estão altamente pressionados pela falta de profissionais, nomeadamente de medicina interna, sem terem pessoas suficientes para fazer as escalas do seu dia-a-dia.
“Quando as pessoas têm sintomas vão para os hospitais, quando estão assintomáticas ficam onde estão. Agora, não vamos transformar lares em hospitais, sem nenhum tipo de condições”, defende Roque da Cunha, que critica ainda a atitude do presidente da ARS Alentejo, a qual descreve como “bullycista, arrogante e que não está a beneficiar os utentes”.
José Calixto refere que, da parte da Câmara Municipal, da FMIVPS e da Proteção Civil Municipal, o interesse foi sempre o bem-estar das pessoas e a rápida reação às ordens recebidas, deixando um agradecimento à dedicação de todos os profissionais de saúde que estiveram no terreno, ao longo do último mês.
Prevenir situações futuras
Dignidade, ou falta dela, é uma palavra que preocupa não só os Sindicatos, como a Ordem dos Médicos e a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, e que vai para além da situação ocorrida em Reguengos de Monsaraz. Todas as entidades partilham a opinião que é necessário organizar uma estratégia nacional capaz de tutelar a população idosa e desprotegida, à luz da realidade pandémica vivida.
“Tem que haver uma ligação entre o Ministério do Trabalho e Segurança Social, que coordena e tutela os lares, com o Ministério da Saúde, que tutela os hospitais e os cuidados continuados A diferença entre lar e cuidados continuados existe, é técnica, mas o tipo de doentes tanto pode estar num lado como no outro e transitar de formas muito fluídas”, defende Alexandre Lourenço.
A Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados corrobora a necessidade de uma maior responsabilização do Estado, afirmando, em comunicado, que “a saúde pública não pode depender da vontade ou orçamento de cada autarquia para criar hospitais de campanha ou espaços de retaguarda” e aponta mesmo a Constituição da República Portuguesa, onde se pode ler que compete ao Estado “garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde”.
Também a Ordem dos Enfermeiros propõe que haja uma dupla tutela dos lares nacionais pela Segurança Social em parceria com o Ministério da Saúde. “A resposta não pode ser meramente social, tem de ser acompanhada por uma reposta adequada a nível de cuidados de Saúde”, refere Sérgio Branco, e acrescenta, “queremos que os nossos pais e avós que, num momento da sua vida merecem todo o carinho e apoio por parte da sociedade que ajudaram a construir, tenham os cuidados de saúde que merecem nos lares”.
Estamos a falar de uma franja da população altamente vulnerável a esta pandemia e que parece estar a ser esquecida, em termos de estratégia de prevenção
sérgio branco – ordem dos enfermeiros
O enfermeiro defende que não é viável continuar a sobrecarregar recursos como consequência de uma má estratégia de prevenção. “Estamos a falar de uma franja da população altamente vulnerável a esta pandemia e que parece estar a ser esquecida, em termos de estratégia de prevenção. Temos de corrigir, à priori, as causas que trazem este tipo de tragédias”, conclui.
Delinear estratégias antecipadamente, dar formação específica para a Covid-19 aos funcionários dos lares de idosos e conseguir um diálogo entre saúde e segurança social, para bem da população idosa, são as medidas que, segundo profissionais de saúde e advogados, permitirão, não só evitar novas versões do ocorrido em Reguengos, como dignificar os últimos anos de vida de grande parte da população.