Tanto Facebook como Whatsapp fizeram já questão de assumir que retiraram o conteúdo do ar por várias vezes – mas ele persiste por aí, depois de divulgado no canal do youtuber Mikki Willis, que alimenta as mais variadas teorias da conspiração.
Plandemic, o vídeo de que se fala, faz o papel de trailer de um documentário ainda a ser lançado e também de peça de promoção de um livro assinado por uma ex-investigadora. Nele, Judy Mikovits, de 62 anos e uma estrela em ascensão no movimento anti vacinas, demora-se a difundir mais uma tese do género. Agora, o alvo é a mais recente pandemia. Apesar de rotulada de falsa e perigosa para o combate à Covid-19, a peça resiste. Ainda por cima, “Plague of Corruption”, da sua autoria, encabeça a lista dos livros mais vendidos da Amazon.
E o que diz Mikovits? Antes de mais, que não é preciso vacina para a pandemia, mas também que a Covid-19 pode ser tratada por métodos naturais – entre eles, claro, a já caída em desgraça hidroxicloroquina. E ainda propaga outras pérolas como “as vacinas da gripe de 2013 a 2015 tinham uma “falha” que tornou as pessoas suscetíveis à nova doença”; que o uso de máscaras é perigoso porque “ativa o vírus” e até que “o isolamento social é perigosíssimo porque reduz a exposição a micróbios”. E, consequentemente, segunda essa lógica, a capacidade de reação do sistema imunitário.
Depois de ter sido desacredita pela comunidade científica, agora Mikovits não poupa nos adjetivos para acusar ainda Bill Gates de querer enriquecer à custa da tão almejada vacina, secundado pelo imunologista Anthony Fauci, o respeitado chefe do Instituto Nacional de Alergias e Doenças infecciosas (NIAID. De acordo com as suas teorias, ambos têm uma vacina pronta, para vender a peso de ouro como conveniente. Não falta sequer, como em todas as teses da conspiração, a referência pejorativa à multinacional de biotecnologia Monsanto, entretanto absorvida pela farmacêutica Bayer.
Mas acaba a revela ao que vem, depois de fazer a pontaria a Fauci, responsabilizando-o por, há uns anos largos, ter caído em desgraça na comunidade científica.
Demitam-no, diz ela
As críticas às alegações de Mikovits não se fizeram esperar. Oiça-se David Gorski, cirurgião oncológico, editor do site Science-Based Medicine e crítico assumido das terapias alternativas e do movimento anti-vacinas. “A quantidade de absurdos, desinformação e informação deturpada nas afirmções de Mikovits é realmente épica”, considerou.
É que, no vídeo, não se inibe de se pintar como uma vítima de perseguição. Como quem diz, teria sido ela a descobrir o vírus da sida se não fosse Fauci, a par de Robert Gallo, reconhecido como um dos co-autores da descoberta, e ainda Robert Redfield, atual diretor do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças americano (CDC) terem-se apropriado da sua investigação. Tudo para “ganhar milhões em patentes”. E acaba a exigir a demissão de toda a equipa de consultoria de saúde da Casa Branca – candidatando-se de imediato ao lugar, claro.
“Não faço a menor ideia do que se trata”, afirmou, entretanto, Fauci, que nega conhecer Mikovits. À época dos acontecimentos, Judy seria uma estudante no Instituto americano do Cancro, enquanto ele já era diretor do mesmo Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infeciosas.
Nem fiável nem de qualidade
Foi no mês passado que o nome de Judy Mikovits saltou para a ribatal. Tinha já mais de 800 referências por dia, segundo dados do Zignal Labs, empresa de software que segue tendências. Mais precisamente, quando Darla Shine, mulher de Bill Shine, ex-executivo da Fox News e ex-assessor de Donald Trump, promoveu o livro de Mikovits no seu Twitter. Desde então, a novíssima autora passou a ser entrevistada em vários meios de comunicação associados à extrema-direita na américa e tornou-se uma celebridade.
Mas que é a mulher de quem se fala? Mikovits é formada em Biologia pela Universidade da Virginia. Fez depois uma especialidade em biologia molecular pela Universidade George Washington e tornou-se estudante pós-doc no referido Instituto Nacional do Cancro entre 1992 e 2001. Ainda foi contratada como investigadora e chefe de laboratório até se mudar para dirigir a investigação no Whittemore Peterson Institute for Neuro-Immune Disease, onde esteve de 2006 a 2011. Só que, entretanto, caiu em desgraça.
Estávamos em 2009 quando publicou um artigo na Science, com outros 13 cientistas, onde relatava uma experiência feita com ratinhos de laboratório que associava o vírus da leucemia à síndroma da fadiga crónica e outras doenças. Só que nenhum outro grupo de investigação conseguiu replicar os resultados e a publicação foi retirada pelos próprios autores. A própria Science escreveria: “Nem os autores conseguiram detetar novamente aquela associação de forma fiável. Além disso, há evidências de falta de controlo de qualidade em várias fases da experiência.” Judy Mikovits acabou por ser demitida da instituição, acusada ainda de roubo de dados e equipamento. Esteve presa cinco anos e, depois de libertada, vivia de forma mais ou menos discreta. Até este vídeo aparecer.
Mas agora, a mesma Science voltou a debruçar-se sobre as afirmaçoes de Mikovits e acaba a desmontá-las ao detalhe. Não deixa passar nem a parte em que se afirma que é absurdo proibir idas à praia “porque na areia e na água salgada há micróbios com poderes curativos.”