“Sei que há situações em que impera o bom senso, e correm lindamente. Não é o meu caso. Mas tenho razões que considero válidas para o regime previsto não se adequar à minha condição”. Joana, 37 anos, está em casa com uma bebé de seis meses, que ainda está a amamentar. Mas o receio em relação às idas e voltas da filha mais velha para casa do pai está, nestes tempos de Covid-19, mais relacionado a outro pormenor da sua condição. Joana sofre de esclerose múltipla, que é uma doença autoimune. Para já está controlada, mas nada que a deixe muito descansada: “sou de um grupo de risco”.
Daí o seu descontentamento com o regime de guarda alternada estebelecido para a filha de 6 anos. O pai da criança é militar na GNR e continua a apresentar-se diariamente no seu local de trabalho. “Propus-lhe que a menina ficasse cá mais tempo, em vez da semana habitual. Logo me respondeu que não, nem pensar, não queria ficar mais afastado da filha custasse o que custasse.” A seu favor, argumentou que não é um operacional que esteja na rua: o seu trabalho é feito numa sala sozinho – e só na semana em que a miúda não está.
“Mas está lá as horas de um dia de trabalho normal e cruza-se com imensas pessoas na ida e na volta. Mesmo quando está em casa, se precisar de se ausentar para ir à farmácia ou ao supermercado, como é que vai fazer? Vai deixar a miúda sozinha?” As perguntas sem resposta sucedem-se na cabeça de Joana. “Para a levar com ele teria de ser com máscara – e não estou a ver uma criança como ela não mexer na cara, não coçar um olho…”
O pai voltou a alegar que consegue garantir a segurança da menina, que não estava em contacto próximo com outras pessoas, e que não havia quaisquer razões para temer que a filha pudesse levar o vírus com ela.
“Num tempo em que uma larga maioria está em teletrabalho, a opção mais simples foi alargar o tempo de estada em cada casa. Mas acabaram por surgir sempre outros impedimentos…”
Ana castro, advogada especialista em direito da família
“No entanto, quando o meu marido a foi buscar ao final da tarde da semana passada, o pai estava acompanhado da namorada – que tem três filhos, dois de um pai e outro de outro. À despedida, claro que se abraçaram todos. É um movimento entre casas diferentes que não se justifica. Parece que andamos a brincar aos isolamentos. Não tenho nenhuma intenção de a afastar do pai, mas entretanto, eu é que fico aqui a tremer…”
Joana ainda tentou que o superior hierárquico do pai da menina intercedesse por ela, mas não foi bem-sucedida. Não sentiu que tivesse alternativa se não voltar a pedir ajuda a uma advogada para pedir a suspensão do regime.
Território legal sem precedentes
Este é só um dos muitos casos que estão a chegar às mãos dos advogados – e as suas reservas são fáceis de entender. Se a vida em quarentena já não é fácil, como é que se conjugam regras e leis que pedem o seu oposto? Por ora, estamos perante um território legal sem precedentes e muitos pais separados estão a ver-se aflitos para renegociar acordos e rotinas, enquanto tentam manter-se seguros. Para muitos, mudanças de última hora estão mesmo a ser vistas como ataques pessoais – ou tentativas de furar acordos.
Apesar de a regra ser o isolamento e a distância social, as saídas para as trocas de semana em casos de guardas alternadas são uma exceção prevista neste novíssimo estado de emergência. Ficava assim consagrado esse direito maior das crianças precisarem de estar com os dois pais durante este período, depois dessa decisão histórica da residência alternada passar a ser a regra em caso de separação de um casal com filhos. Mas, há sempre um ‘mas’ nestas histórias. É que em tempos de pandemia o mais seguro seria cada um abrigar-se num só lugar. E há casos em que isso pode fazer toda a diferença.
Assim, apesar de estarem autorizadas as deslocações necessárias para a guarda partilhada dos filhos, até a Associação para a Igualdade Parental – que defendeu a chamada custódia conjunta sem cedências – começou por considerar que agora a criança deveria circular o menos possível. “Por uma questão de saúde pública”, justifica Ricardo Simões, presidente daquela associação. “Muitos pais não compreenderam, mas aquelas questões eram mais importantes”.
No seu entender, um momento extraordinário como este pede acordos extraordinários: “os pais devem ter o um mínimo de bom senso e reduzir a probabilidade de contágio.” Mas, lá está, trata-se de uma situação temporária – dai ter defendido que, quando as escolas fecharam, a criança deveria ficar com o progenitor com quem estava. Agora, que já não estamos na mesma fase, sublinha, as recomendações da associação também já mudaram.
“Vamos ter de começar a ter alguma normalidade muito em breve. Com o fim do estado de emergência, muitos vão voltar ao local de trabalho, há alguns alunos até que vão regressar à escola. São decisões que devem ser tomadas em função da evolução da situação.” Assim, as suas maiores preocupações estão agora centradas no momento que se segue.
“Muitos magistrados agiram rapidamente perante o que lhes era pedido, outros nem por isso. Era importante avaliarem o mais rápido possível a forma de compensar quem esteve menos tempo com os filhos – e em que situações não o devem fazer.” Quando à dimensão do problema, bom, isso, insiste Ricardo Simões, só quando os tribunais voltarem ao normal. “Receamos que tenha havido um aumento substancial dos conflitos. E temos de nos preparar para resolver isso. Não será bom se for em cima da hora.”
Direitos de uns, vontades de outros
Entre as muitas outras dificuldades que se levantaram, está o caso de Ana (chamemos-lhe só Ana…), 42 anos, consultora de comunicação. “O pai do meu filho não se pode aproximar de mim.” A sentença a favor desta vítima de violência doméstica saiu no final de 2019. Desde então a troca semanal de casa era feita através da escola. “Na segunda de manhã ia um levar e o outro buscar, trocando na semana seguinte.” Nas férias, Ana ia-se socorrendo da mãe. Mas agora que a senhora, 70 anos, é considerada de risco, essa opção não se lhe afigurou razoável.
“Passou-me tudo pela cabeça. Até ir deixá-lo numa esquadra e ele ir lá buscá-lo. Mas depois achei que ainda seria pior.” Entretanto também sugeriu que fizessem a troca só de 15 em 15 dias, para permitir cumprir uma quarentena nesse tempo. Mas nada. “Não encontrei qualquer margem de manobra que permitisse ter um regime de exceção.” Para não ficar em incumprimento, acabou por ser o pai de Ana que, apesar de também ter 70 anos, a oferecer-se para fazer a ponte. Assim, desde o início do confinamento, Ana vai levar o miúdo ao avô cerca de 15 minutos antes da hora marcada para o pai o ir buscar. “Foi a única maneira que encontrei para reduzir o risco. Em termos de regime, bom, nisso ficou tudo na mesma.”
O caso não surpreende Ana Castro, a especialista em Direito da Família a quem têm chegado imensos casos do género. “Em muitas situções foi possível chegar a um novo acordo. Mas nem sempre”, nota. Os casos têm sido tantos, assume ainda aquela advogada, que a questão mereceu até, recentemente a atenção tanto da Ordem dos Advogados como do Centro de Estudos Judiciários, que divulgou mesmo um documento com mais de 500 páginas. Lá estava, a partir da página 259, a devida reflexão ao impacto processual da legislação que aprova medidas excepcionais como resposta à doença COVID-19, na Jurisdição da Família e das Crianças
“Num tempo em que uma larga maioria está em teletrabalho, a opção mais simples foi alargar o tempo de estada em cada casa. Mas acabaram por surgir sempre outros impedimentos…”
Um dos maiores impedimentos foi a proibição de circular fora do concelho de residência, como aconteceu na Páscoa. “Num dos casos que me chegou, o pai vive em Viseu e a mãe na área de Lisboa. Lá conseguimos que as crianças só trocassem de casa de 15 em 15 dias. Mas, quando estão no Norte, o pai continua a trabalhar fora de casa e as crianças ficam com uma tia. Se o pai estivesse em teletrabalho era garantido que ninguém voltava infetado. Assim, não.”
O outro caso que pediu a sua intervenção diz respeito a um ex-casal que ainda tem um regime de guarda provisório, porque decorre um processo de proteção numa comissão de proteção de menores. “A mãe pedia para as crianças ficarem com ela porque o pai tinha-se mudado para casa da mãe dele, deixando os filhos com a avó enquanto ia trabalhar. E só soube do que estava a acontecer porque o filho mais velho, 12 anos, lhe contou. ” Mais uma vez, o pai nem quis ouvir falar de outro regime, mesmo que temporariamente.
Foi também o que acabou por acontecer com Joana, a tal mãe que sofre de uma doença autoimune. O pai da menina apresentou uma declaração a comprovar que trabalhava isolado dos outros e o tribunal aceitou. “Sei que mais cedo ou mais tarde o regime teria de voltar ao habitual. Mas julgo que poderia perfeitamente ser depois de estar tudo mais regularizado. Assim, temos de manter os procedimentos de cuidado extremo: sempre que ela chega tira logo a roupa, que vai para lavar, e ela segue para dentro da banheira. Depois, durante aquela semana, mantemos o distanciamento social em casa. Não há beijinhos nem abraços. E isso custa muito”.